quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 162



Quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

22:18

Estava no corredor, pensando que talvez chova amanhã e talvez esteja na hora de eu escrever, antes que chova, e ouvi:

− Ser louco é estar vivo.

Olhei para o lado. Ela tinha a pele morena, mais escura que a minha e os cabelos negros. Meus cabelos também são negros, embora ache, porque não lembro, que eles sejam pintados. Ela estava com um caderninho na mão, cuja capa tinha um cachorro, e estava escrito Blossom.

− Você é a Maria que escreve?

Sorri. E fiquei olhando para ela. Sorri do jeito que sorrio e notei que ela fazia algo parecido: sorrir olhando para o chão.

−Não gosto quando as pessoas ficam me olhando e pensando coisas. Isso é privilégio meu.

− Tudo bem, disse eu.

Ela fez um gesto no ar, como quem espanta uma mosca, como quem diz vamos deixar pra lá.

− Como você escreve a história que está escrevendo? ela quis saber.

Respondi que não sabia, apenas escrevia. E nem história era. Talvez apenas um amontoado de coisas, sentimentos, palavras sem nexo, que talvez formassem frases e na verdade isso não era importante porque ninguém ia ler o que escrevo.

− Por quê, ela perguntou.

Suspirei.

− Porque não sou escritora. E a história é uma merda.

Ela me disse que também escrevia escondido.

Ela. Blossom, resolvi batizar.

Escrever ajudava ela a sair da solidão. Ou lidar com ela. Nunca tinha pensado nisso, mas acho que escrevo pelo mesmo motivo.

Cris está aqui por perto. Lembrei agora quando escrevi que as melhores partes eram as que eu falava dela.

Blossom, fiquei pensando, deve ter uma dor parecida com a minha. Parecida com a de todas nós. Não saber por que e para que estamos aqui. O que foi a nossa história – e o que ela será. Esse é meu drama, Blossom. Reencontrar o que se perdeu. Talvez a inocência que me roubaram, e percebi olhando para ela, enquanto ela disse que não gostava que ficassem em silêncio, observando, tentando adivinhar seus pensamentos a partir de suas expressões faciais, que também devem ter roubado a dela. Bem, não viemos parar neste fim de mundo por acaso.

Roubaram de mim. Roubaram dela. Roubaram de Dafne, que ouvi dizer que vai sair daqui. Neste momento sinto saudades da minha pintora. Sinto saudades do piano.

Roubaram de mim.

Roubaram de Clara. A vida que deveria ter sido e não foi.

Roubaram de Maria, a mãe mais linda do mundo. Que tocava aquele piano para a filha mais linda do mundo, as melodias que não consigo mais tocar, não consigo sentir. Não consigo descrever. Sei que elas estiveram lá. E talvez ainda estejam.

Lindas feito um corte no pulso.

Sobre o que será que Blossom escreve? Talvez ela não queira que ninguém leia, talvez escreva em códigos. Talvez tenha seus traumas.

Bem-vinda ao lar, Blossom.

Talvez ela também escreva para lembrar.

Ou esquecer.

Sempre que fico tempos sem vir aqui e escrever, sempre sem ter a menor ideia de quais palavras virão, como diabos vou terminar um parágrafo, acho que posso viver sem escrever esta bosta. Mas não posso. Lady Clara me chama. Minha garotinha me chama e ela sabe que eu vou voltar.

 E enquanto não der paz a ela, não vou dar paz a mim.

Blossom sumiu no corredor. Baixei a cabeça e olhei pela janela. Talvez chova amanhã. E então escreverei de novo. E tocaremos aquele piano, Maria.

− Você promete que não vai escrever sobre mim, que não vou virar um personagem em sua história? Blossom voltou para perguntar.

− Prometo, respondi. Ela sorriu e foi embora.

Foi então que vindo de algum lugar perdido dentro de mim, comecei a ouvir e não havia ninguém para testemunhar. Eram sons confusos, até que decifrei: eram acordes de piano.

Suspirei. E soube naquele momento que não seria capaz de manter minha promessa. Desculpe, Blossom. E vim para cá.

Vamos tocar, Maria.

Clara precisa continuar ouvindo.

22:46

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 161


Segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

21:32

A porta se fecha de novo. Sarah disse que eu tinha que continuar escrevendo senão os bichinhos iam voltar. Por bichinhos, entendo, bichinhos mentais. Eles voltam mesmo. Acho que o jeito de afastar o enxame é escrevendo, e cavando um pouco mais. Uma dessas loucas me parou hoje e pediu para eu fazer um personagem inspirado nela. Acho que está virando moda, uma coisa meio doentia, como talvez tudo mais aqui, pedir para Maria, A Louca Que Se Tranca No Quarto Para Escrever, também conhecida pela alcunha de A Louca Que Não Lembra, para que conte a história dessas doidas anônimas.

Acho que desde que Lady Ballet me pediu um presente de aniversário. E antes quando Jade teve sua festa aqui, e deve ter se espalhado porque Cheshire, a garota que é só sorriso, disse que escrevi sobre ela. Quer dizer, eu vou falando sobre elas até que chego ao que realmente interessa: a pequena Clara.

Devemos estar todas conectadas por um fio que ainda não entendo. Essa garota de hoje, minha nova biografada, é pequena, como se quisesse ir para o bolso de alguém, o que é um símbolo interessante para alguém que precisa de carinho. Ela é loira e pequena. E fica balançando os pés na cadeira, como se fosse uma velha na cadeira de balanço – aliás, hoje ela disse que o sonho dela é ter uma cadeira de balanço, o que também é um símbolo interessante – sempre se balançando. Perguntei como seria um personagem baseado nela, e ela me disse que tinha que ser alguém alegre. Olhei fundo em seus olhos de bolitas verdes e entendi o laço que nos une: todas nós somos ligadas por uma tristeza silenciosa no olhar. Aquela tristeza de quem espera o trem chegar na estação. E ele nunca chega.

Ainda assim, esperamos.

Vou escrever sobre você.

Ela sorriu. Acho que devo ter, de alguma forma, nesse simples gesto, levado um pouco de alegria para ela. Eu que achei que nunca servi para nada, quem sabe, possa vir servir a alguém.

Ela me deu um abraço e sumiu no corredor, disse que talvez a gente ficasse um tempo sem se ver. Ela me olhou quando já estava quase sumindo e disse:

Acácia. Meu nome é Acácia.

Ela ficou um instante em silêncio e ouvi sua respiração como quem esbafora esperança e disse:

Obrigada, Maria.

Eu sorri.

Acácia sumiu no corredor.

Gostei dela.

Também vi Sabby. Ela estava com uma fita na cabeça. Estava com uma cara boa e quando digo boa quero dizer que, provavelmente, ela não esteja pensando em morrer – por hoje. Ela falou da outra garota, a tatuada de cabelos vermelhos, disse algo como ela ter que reencontrar a – Savanah, lembrei agora. Disse que inclusive uma estava dentro da outra, e por um instante me perguntei se Savanah não era uma projeção ou Sabby tem personalidade dupla, algo assim. Mas eu vi Savanah, então devemos estar todas loucas.

Somos todas meio loucas, me disse Acácia, quando ainda não sabia que seu nome era esse.

Somos, então o que temos a perder?

Cris me pergunta se escrevo sobre ela. Digo que sim. Deixo ela ficar por aqui, embora ela não esteja por aqui agora, e só ela, desde que ela não me leia.

Essas devem ser as melhores partes, ela diz.

As partes dela.

Sorrio.

Pensamentos vêm e vão. Me pergunto o que eu mesma estou escrevendo neste exato instante: as partes dela são as melhores. Talvez exista um sentindo inconsciente nisso.

Já sei que você espera que Cris e eu terminemos ficando juntas.

Mas já me ocorreu que ela pode ser minha irmã.

Ou irmã, de alguma forma.

Talvez eu também ame ela, de alguma forma.

Maria Que Fala De Amor.

Sinto saudades dela. E daí?

Nada é o que parece ser.

E tudo isso para dizer que nesses dias que não escrevi imaginei Maria, a mãe, que gostava de contar histórias, e que talvez tenha ensinado Clara a ler e escrever através da sopra de letrinhas. Maria, com carinho de mãe, juntou as letras e formou uma frase. Maria que contava histórias, que lia para Clara. Clara, que depois de aprender a escrever, talvez tenha contado histórias também. Uma das duas, se estivessem vivas, talvez escrevessem um livro.

Ou se estiverem vivas.

Estou cansada. Não consigo mais escrever. Mas gosto de pensar que depois de Maria, a mãe, escrever várias vezes a mesma frase, catando letrinha por letrinha, naquela sopa que sempre escondia os caracteres, os símbolos, talvez depois de anos, e é nisso que quero pensar hoje, Clara aprendeu a ler e finalmente decifrou o que estava escrito todo esse tempo em seu pratinho:

Mamãe ama Clara.

22:05