quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 149




Quinta-feira, 27 de novembro de 2014

21:39

Hoje vim para cá com vontade de escrever. De compartilhar com seja lá o que houver do outro lado essa coisa que nunca sei nomear e que me faz sentir.

Viva, talvez.

Se é isso que chamam de felicidade, então hoje estive feliz.

Feliz depois de tudo o que passei e não, não me lembro o que foi. É claro que houve algo que me fez esquecer de tudo. E doeu, e dói até hoje. Mas às vezes a dor passa. Ela tem passado quando escrevo e fico quase grata por ninguém ler isso aqui, assim posso ser...

Eu mesma?

Ouço violinos.

Lindos como um corte no pulso.

Como rosas cujos espinhos cortam e rasgam. Mas não deixam de ser rosas por causa disso.

Tenho vontade de chorar.

Mas então espero. E continuo escrevendo.

Dafne me contou coisas. Ela disse que estava feliz. Que a história do pontinho de luz no escuro se transformou em um céu estrelado e agora é esse céu que ela vê. Hoje, amanhã, não sabemos.

Clara, a pequena Clara, talvez também tenha encontrado seu céu estrelado. Quem sabe, Maria, a mãe, também.

Ouço violinos e não sei de onde eles vêm. Vejo rosas pela calçada, pelo campo aqui perto, como um tapete vermelho que se espalha até o horizonte. Estou tendo um delírio? Quem se importa? Foda-se, é bom. Me faz sentir em paz. E me dá força para chegar mais perto daquele penhasco. Um dia de cada vez.

Qual foi o grande trauma que me fez esquecer de tudo?

De novo, tenho vontade de chorar. E me arrepio, e quero parar de escrever. Mas não consigo.

É lindo como um corte no pulso e sempre que escrevo isso, olho para as cicatrizes em meus braços. E as queimaduras.

Queria que estivesse chovendo. Mas não está, embora este vento me sugira: esperança. O vento quando sopra em um corte, alivia. Não é uma metáfora interessante? Dor e esperança estão interligadas, nesta história que vou desenterrando sei lá de onde a cada noite que fico presa aqui. Uma solitária livremente escolhida, embora ainda não ache que tenha escolhido tudo isso.

Ou será que sim?

Sarah insiste com esse papo de inconsciente, e tudo o que aquele velho tarado fez ela e um monte de gente doida acreditar.

Mas e se ele estiver certo?

O maldito homem alto de cabelos lisos e negros que demorei tanto para batizar.

Se alguém passou por um abuso, não consegue simbolizar.

Me arrepio uma vez mais.

Deus, que não seja este o fim que entrevi agora.

Por favor, Deus, se existe mesmo algo aí nisso que chamam de céu: que não seja esse o final que entrevi agora.

Maria, a mãe, talvez tenha sofrido abuso e como ela ficou quieta, ou falou e não acreditaram, a desgraça foi passada para a geração seguinte. Claudius, maldito seja, deve ter tido antecessores. Mas quero acreditar, porque sou eu que invento esta merda de história, e eu deveria escolher o que acontece ou não, mas meus personagens parecem ditar o que acontece e não eu, a história me ensina como quer ser contada, eu, péssima escritora, ainda assim quero acreditar: essas duas ainda podem encontrar um sentido para toda a dor que aconteceu.

Maria, a mãe, contava histórias para Clara. Talvez ela escrevesse, talvez não. Clara talvez, assim que aprendeu a escrever, também inventasse histórias. Mas talvez tenha perdido a capacidade de simbolizar assim que papai começou a ver filhinha como sua putinha.

Filho da puta, maldito.

Ele que não se contentou com Lara, vagabunda dos infernos, teve que fazer da sua filha um brinquedinho. E se foi depois que ele voltou a beber, depois dos dez anos, quando ele estava se divertindo com o champanhe no corpo de Lara, mais novo que o corpo de Maria, a mãe, sim: então Lara teve culpa no que aconteceu com Clara depois.

Que merda de história, comecei a falar de poesia e voltei a esse miserável, que espero que esteja queimando no inferno.

Claudius morreu?

E Maria, a mãe?

E a pequena Clara?

Eu não sei. Apenas queria retomar a poesia. Apagar tudo isso. Começar de novo. Inventar um novo final. Quem sabe um novo começo. Uma nova história.

Para todas essas garotas com fendas que estão por aí e que talvez me leiam escondido. Garotas com fendas. Acho que é isso. Escrevo para mim, mas agora percebo: não é só para mim. Também escrevo para dar um sentido a dor que, hoje começo a entender, não é só minha.

E se eu conseguir encontrar um sentido para tudo isso, talvez elas também possam.

E se é isso que chamam de amor, então Maria, a Louca Que Escreve Trancada No Quarto E Que Se Arrepia E Tem Vontade De Chorar, pode aprender a amar.

22:07

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 148




Terça-feira, 25 de novembro de 2014

22:01

Ontem choveu e não escrevi. Não sei se foi isso. Hoje senti o peito apertado, uma raiva de querer dizer para o mundo, carinhosamente: vá se foder. Será a falta da escrita? A falta de sangrar aqui? A falta de chorar um pouco mais? De gritar, até porque quando grito pelas palavras escritas ninguém ouve, mas meu espírito enxuga suas lágrimas, e às vezes cansa suas cordas vocais do coração, será isso? Porque dói. Mas é uma dor boa.

A dor que cura.

Sarah disse que a gente pode escrever para limpar os pensamentos.

Para organizar o caos.

O caos dentro de mim.

As palavras vão se acumulando e a dor vai ficando lá para trás, no começo da frase, para onde não olho mais e vou seguindo em frente. Sem raiva, sem medo. Ou com tudo isso, mas com palavras que vou tirando não sei de onde, e ainda não entendo qual a mágica que me faz escrever, talvez a mágica daquela música que sugere um lugar bom, porque existe esse lugar, e escrevo pensando nele, canto e danço, se eu cantasse e dançasse, pensando em como ele é. Como será, o lugar que fica no fim disto tudo.

Lá onde está a pequena Clara.

Pensei se Lady Ballet dançava por esse motivo.

Dafne mostrou uma de suas pinturas, uma mulher deitada, linda, em sua incompletude, naquela dor que rima com amor. Acho que escrevo para garotas com fendas. Como Daf, Sabby. Lady Ballet, provavelmente.

Às vezes isso tudo parece um Hino à Depressão.

Mas sei que de algum lugar, Clara, se chegou a crescer, deve ter tirado forças para seguir em frente. Penso nisso enquanto escrevo. Maria, a mãe, feliz, mas tristonha, ou uma tristonha feliz, talvez tenha tirado forças também, no meio da solidão em uma das várias vezes em que foi internada. Elas sabiam que existe algo na dor que só quem já compartilhou dela pode entender. E talvez elas também tenham se esquecido de onde colocaram, depois que esconderam: sua dor.

Aqui dentro faz calor. Não gosto de calor. Talvez este texto, sempre horrivelmente mal escrito, tivesse saído melhor se eu tivesse escrito ontem. Mas talvez não existisse, aliás, certamente não existiria, se eu tivesse escrito ontem. Escrevo, choro, grito e quero explodir: hoje. Ontem foi ontem. Escrevo o que sou agora e só escrevo porque sei que ninguém vai ler. E mesmo que alguém leia isso aqui escondido, por que perderiam seu tempo com esta merda?

Por que perderiam seu tempo comigo?

Talvez haja um motivo. Quer dizer, é claro que há. Hoje outra dessas loucas, porque a história que tento esconder a cada noite parece querer criar asas e sair pela janela, me perguntou qual o sobrenome da família de Clara. Tipo, poderiam fazer um genograma, como já devo ter pensado um tempo atrás, e essa doida me veio com essa: qual o sobrenome da família de Clara?

Nunca tinha pensado nisso.

Achei uma pergunta perturbada de uma garota perturbada. Outra garota com fendas.

Mas talvez aí esteja um dos segredos desta história.

Se eu descobrisse um nome a mais, talvez eu estivesse salva.

Um nome a mais, ó meu deus, e descobriria como termina a história de Clara.

De novo, me arrepio.

O que significa que estou no caminho certo.

Sabby me contou que anda de olho em um desses malucos. Disse que ele gosta de poesia, que foram feitos um para o outro, que são almas gêmeas, parecem ler a mente um do outro. Ainda não sei se isso é real ou está apenas em sua mente delirante – mas se for, e daí? Ela pareceu feliz e isso, por hoje, basta para uma garota com fendas.

Um nome e um sorriso.

Acho que é tudo do que precisamos no dia de hoje.

Enquanto respiramos, aliviadas, na esperança de estarmos indo, não sei e não importa para onde.

Rumo ao penhasco. Que nos chama. Que nos pede um mergulho.

Mas que no dia de hoje, acredito: vai nos acolher.

22:23

domingo, 23 de novembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 147



23 de novembro de 2014

00:32

Chego perto da janela e sinto: vento de chuva.

Queria que estivesse chovendo. Que estivesse frio. E que eles me acolhessem neste começo de madrugada.

Como o piano que volta. De novo e de novo.

E sonho que ele está lá. E sonho que continuo aqui.

Lady Ballet disse que adorou seu presente de aniversário. Disse que se enxergou dançando de novo. Não fiz nada demais, pensei, mas contei para ela. Mentira: dei para ela ler um trecho do que escrevi. E ela se sentiu, não sei, acho que um pouco mais viva. Ela me disse que se apaixonar era desgastante, que amar e odiar dão trabalho.

Será que ela já pertenceu a alguém?

A dor de não ter mais.

A minha dor.

A dor de todas nós.

O piano me conforta. Poderia dizer que choraria com ela se ela chorasse, o que acho que ela não vai fazer, não na minha frente. A verdade é que choramos todas escondidinhas ou choramos por dentro. Até que a dor passe. E se ela não passar, a gente finge que ela não está mais lá, como algo que a gente esconde sem-querer e quando procura, porque acabamos procurando nossa dor de volta, não nos lembramos de achar.

Não é bonito? Esquecemos de achar nossa dor.

Acho que Sarah ia gostar disso.

Dafne, minha pintora preferida, me mostrou um esboço do que ela imagina que seja a história que estou escrevendo. Eram dois bonecos, ambos sem rosto, um maior levando o outro pela mão, como se estivessem dançando. Como em um carrossel. Dançando, Lady Ballet.

Vi na mesma hora que eram Maria e sua pequena Clara.

Tão lindas que quase chorei. Na verdade, não tive vontade de chorar na hora, mas me deu vontade agora. Lindamente triste, não é isso? As duas sem rosto porque, imagino, o rosto somos nós que colocamos, como personagens que a gente pinta com a cor que quiser porque afinal: a criação é nossa.

Esta história não tem rosto.

A história que tento inventar a cada noite não tem rosto.

Talvez nunca tenha.

Talvez tenha para mim, embora eu ainda não consiga enxergar.

Mas sei que é um rosto lindo. São rostos lindos. Mãe e filha.

Ó, Daf, por que fez isso comigo?

Me arrepio uma vez mais.

Ela me disse que estou no escuro. Que todas estamos. E caminhamos por ele e então um pontinho de luz, muito pequeno, um inseto de fogo, que pode ser esperança, ou apenas um inseto mesmo, aparece. E seguimos ele. Não temos mais para onde ir. Olhamos para todos os lados, que é a mesma coisa que olhar para lugar nenhum, porque não vemos. E se não vemos, não temos nada a perder. A escuridão é o universo a nossa volta. Mas o ponto está ali. Tão pequeno, mas real. Ele pode crescer, e cresce, até que ele vai se tornando aos poucos o universo.

E não há mais escuridão.

Ou há, mas assim como a dor, a gente finge que escondeu e não sabe mais onde está.

Como crianças que brincam e se cansam de brincar. Ou descobrem outras brincadeiras.

Claudius não está aqui. Não mesmo.

Hoje não. Nem Lara. Talvez Marcos e Jonas estejam brincando de se esconder naquela praça que imaginei algum tempo atrás, e que na verdade está não muito longe daqui. Ninguém brinca lá agora porque é de madrugada. E crianças devem estar dormindo. Mamães preocupadas. Crianças dormindo, anjinhos quietinhos sonhando sonhos. Maria, a mãe, observa Clara. E Jonas.

Marcos, o filho não assumido de Claudius com Lara, primo e irmão de Clara, dorme também.

Talvez não tenham rostos. Mas neste momento sei que são anjos. E ouço um piano tocando ao longe. E me arrepio. Ainda não começou a chover. Hoje estamos bem. Está tudo em paz aqui.

Será uma noite tranquila.

Cris andou vomitando. Ela sempre passa mal. Grávida não deve estar, mas – sei lá que tipo de associação fiz, mas – parece que Emília voltou para visitar. Não sei, acho que vi uma garota parecida com ela. Achei que nunca mais fosse ver ela de novo. Achei que nunca mais fosse ver tanta coisa.

Como a família que talvez eu já tenha tido.

Será que algum dia verei eles de novo?

Enquanto isso, e enquanto ouço o piano, esse piano que me faz seguir em frente na escuridão e no pontinho de luz desta madrugada, finjo que estão todos lá. E que esta será uma noite tranquila.

Enquanto a pequena Clara dorme, sonhando, e Maria, em seus pensamentos de mãe, embala e protege sua princesa, ela sabe: nada de mal vai acontecer a sua filhinha.

01:02

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 146




Terça-feira, 18 de novembro de 2014

23:49

Faltam dez minutos.

Quero capítulo novo com rosas amarelas e ballet, de presente de aniversário.

Eu já tinha visto ela, mas nunca assim tão de perto. Ainda não sei seu nome. Ela veio para mim, ontem, e disse que estava de aniversário amanhã – daqui a pouco, na verdade – e pediu para eu escrever sobre ela. Tipo um cartão de aniversário. E como seria essa personagem inspirada em você, perguntei, ainda sem ter certeza, como sempre, do que eu deveria fazer.

Ela disse que queria rosas amarelas. Seria uma bailarina. E seria um tanto melancólica.

Ela me disse que se sente muito gorda, embora para mim seja bem magrinha. Então ela disse que coloca as coisas para dentro, depois para fora. Nada deve entrar. E se entrar, tem que sair.

Gostei dela. Pensei nessa bailarina, cujo nome ainda não sei, carente e desesperada para me pedir um presente, eu, Maria Carente E Desesperada Que Às Vezes Faz Coisas Boas Para Os Outros. Talvez ela não seja desesperada, não como a maioria de nós. Na verdade, ela sorriu bastante nos breves instantes em que conversamos. Mas sei que ela também tem suas fendas. Um olhar de melancolia que decerto foi o que fez ela vir até mim. Pensar que essa garota vomita as coisas me causa quenturas na garganta e uma certa tontura.

Talvez eu também já tenha feito isso.

Muito tempo atrás.

Como talvez Clara.

De novo, começo falando de mim e acabo parando nesta história delirante. Comecei a falar dessa garota, Lady Ballet, na falta de outro nome, e tudo deságua em mim. Talvez tudo isso seja sobre mim, no fim das contas.

De novo, tenho vontade de chorar.

Me arrepio e sangro enquanto escrevo isso.

Choro e sorrio enquanto escrevo.

E ao escrever, danço.

Como Lady Ballet e suas rosas. E imagino ela com suas sapatilhas dançando em meio a uma cachoeira de rosas amarelas. Feito as que Oxum gosta. Ou seria Iemanjá? Não importa. Ela dança e talvez já não dance mais. Talvez nunca mais tenha dançado. Mas ela ainda aguarda uma última dança. Sozinha ou acompanhada, não importa. Ela sorri e enquanto caminha na ponta dos pés, não existe dor. A dança da cura, do sentido depois de tudo que se quebrou.

Por que ela me pediu para escrever sobre ela?

Porque ela é uma garota de fendas.

Sabby diz que sou a Maria Observadora.

Pelo menos não somos como essas idiotinhas que vivem rindo de tudo e não assumem suas dores, porque é uma vergonha dizer que temos dias tristes de vez em quando. A tal ditadura da felicidade. Hoje rio delas. Rio com pena. Com uma certa superioridade de quem já olhou por cima do muro e não tem mais como fingir que não há nada lá.

E as loucas somos nós, acabo de pensar.

De qualquer forma, ao som dessa música que me volta de tempos em tempos, todo dia na verdade, se eu tivesse coragem, coisa que nunca vou ter, de que alguém lesse essas palavras bem ruinzinhas que escrevo, talvez Lady Ballet me lesse e dançasse. Não, lesse, não. Apenas dançasse. Mesmo que fosse apenas uma dança de aniversário. Uma dança para matar as saudades. Uma dança para viver mais um pouco.

Para chorar sozinha no escuro.

Dançando.

Celebrando a vida, que apesar de tudo ainda é vida.

Vida hoje.

Estava louca para dormir, mas estava lendo um texto que Sarah me deu sobre sublimação, sobre crianças que aprendem a escrever bem e sentem prazer nisso, e senti uma certa paz. Passou o sono. Precisei vir aqui brincar no meu playground.

E espero que você esteja brincando no seu, Lady Ballet.

Feliz Aniversário, garotinha.

00:10

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – 145




17 de novembro de 2014

21:21

Hoje uma dessas malucas passou por mim no corredor com uma roupa que parecia um pijama, como se as outras também não tivessem roupas estranhas, e me disse:

Quero ver você escrever um novo capítulo da sua historinha hoje, antes das 10 da noite.

E sumiu no corredor.

Nunca tinha falado com ela.

Tenho menos de quarenta minutos, neste momento.

A porta está aberta. O corredor está deserto. Não tenho nada para escrever, mas não tinha nada para escrever desde a primeira linha. E algo aconteceu. Então vou escrever. E confiar que algo vai acontecer. Tipo uma historinha surgida do nada.

Ouço uma melodia que me arrepia, distante como o tempo, mas tão perto como o tempo, e que ainda não sei se existe de verdade ou está só nos confins da minha cabeça. Nos confins de mim. Mas, acho, se eu imagino que existe, então existe. É o meu mundo interno, diria Sarah.

Sabby disse que deixaram ela sair, e ela comprou bolachinhas e chocolate. Então ela voltou e disse que um homem estava comprando muitas cervejas.

Não sei se já falei pra ela, mas eu não bebo. Por algum motivo, o cheiro de álcool me traz uma sensação ruim, de além do horizonte.

Claudius bebia.

Claudius batia em Maria, a mãe.

Claudius abusava de Clara, a princesa mais linda do universo. Sua filha.

Claudius voltou a beber depois de dez anos, quando estava se divertindo com Lara, provavelmente no quarto de Maria, quando ela estava internada no hospital. Lara, irmã de Maria.

Putinha.

Sabby contou que foi naquela festa, para a qual se arrumou com vestido e tudo. Ela disse que viu uma garota com cabelos curtos que ela achou que tinha uma namorada, e que conversou com um outro cara, que tirou ela para dançar, mas ela disse não. Não sei se isso aconteceu mesmo ou ela sonhou. Na verdade, se ela me conta, em algum nível, aconteceu. Faz diferença? A ideia desse pessoal dançando é algo que aproxima este lugar de um manicômio. Mas um manicômio feliz, suponho. Um pouco de dança, por que não?

Achei estranho essa garota de pijamas me intimar a escrever mais um capítulo desta história, horrivelmente mal escrita, que nem história é. Apenas um delírio.

Ou será que não?

Sarah está me pregando peças. Alguém, não sei quem, talvez ela, sabe para onde estou indo. Mais do que eu, ou mais do que eu consigo ver. Ou quero ver.

Não vi Cris hoje, mas comentei assim, bem por cima, largando uma palavrinha aqui outra ali, sobre a história de Clara. Ela perguntou por que Clara não visitava Maria no hospital, na prisão, no manicômio, ou seja lá onde ela esteja.

Não sei.

Mas acho que desci mais dentro de mim pensando nisso.

Então ela falou:

Se eu pudesse dizer alguma coisa para essa Maria, seria: não desista.

Senti vontade de chorar.

Acho que no fundo o que ela quis dizer, porque foi embora depois disso e não disse, é isso mesmo, e me arrepio, e tenho vontade de chorar, mas sigo em frente porque escrever dá um novo sentido às minhas cicatrizes, às minhas queimaduras, às faltas que tenho, que Sabby tem, que Dafne tem, que Brownie tem, Jade, e todas nós. É isso o que ela quis dizer, e escrevi tudo isso para registrar o que sempre esqueço, mas também acabo lembrando, feito bichinho no ouvido, bichinho bom, que insiste, que quer, que implora:

Não desista, Maria.

Não vou desistir, Cris.

Hoje não.

21:42

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 144



Sexta-feira, 14 de novembro de 2014

(pouco depois das nove da noite)

Começo a escrever, como sempre, sem ter a menor ideia do que vem pela frente neste texto, sempre horrível, sempre na esperança de que ninguém leia. Apenas escrevo. E sonho, de alguma forma. Sonhei com Sarah. Não lembro o que ela me disse, mas estávamos em sua sala. Maria no consultório de Sarah. Ela disse alguma coisa, e riu, e eu joguei uma bolinha de papel em sua direção. Podia ser uma pedra, mas era uma bolinha de papel. Eu não entendo símbolos. Ela estava sentada em minha frente, eu no divã, e quando dei por mim ela me beijou. Nos beijamos. Na boca. Só que quando a gente se beijou, não era mais ela. Não era a Sarah de antes do beijo, de antes de se levantar de sua cadeira.

E então acordei.

Esqueci detalhes.

Não lembro de mais nada.

Não entendo da simbologia dos sonhos.

Seria eu tentando encontrar a mãe que um dia tive e que não lembro?

Meu deus, quanta loucura.

Vi Sabby hoje, sentada em uma poltrona, perto do corredor. Ela estava com um vestido de festa, mostrando sua pele de leite, com os longos cabelos caídos sobre ela. Coitada, deve ter achado que ia para uma festa. Bom, talvez ela vá. Quem sou eu para dizer que não? Talvez eu mesma devesse ir em uma festa, mesmo que fosse imaginária, como provavelmente é a dela, em vez de ficar aqui nesta cela escrevendo essas bobagens. Ela me perguntou de onde tiro as frases que escrevo. Se ela soubesse que até o que ela fala, assim como o que as outras falam, o que as outras vivem, qualquer coisa é material para fazer o moinho girar... A verdade é que não sei de onde tiro o que escrevo, mas às vezes uma frase no corredor, ou na poltrona, como no caso dela, pode fazer nascer um texto. Veja, eu não tinha NADA para escrever minutos atrás. E aqui estamos.

Que bom que ninguém vai ler isso aqui.

Sabby tem uma falta. Vi isso em seus olhos, como vejo nos olhos de todas nós. Dafne passou por mim, no corredor, apressada para ir em algum lugar. Para onde, me pergunto, neste fim de mundo? Talvez todas busquemos um lugar mental mais confortável do que o nosso. Um lar, acho que é isso. Um lar.

É isso.

Um lar.

Uma família.

Hoje não está chovendo.

Me arrepio. Essa coisa de “isso parece com”, segundo Sarah, é que vem do nosso inconsciente. Ela me deu um livro para ler, mas ainda não tive coragem de abrir. Nem ia escrever “coragem”, mas foi essa palavra que me veio à mente.

Eu fujo. Porra, eu fujo. Mas estou no labirinto e esta estrada, por mais que eu queira voltar, é de mão única. Não há volta. Ou há?

Estou com saudades de Cris. Não vi mais ela. Não vi mais muita coisa.

O que mais? Vou apenas registrando meus pensamentos em tempo real porque eles me conduzem a algum lugar. Desconhecido, e tenho medo do desconhecido.

Medo como uma criança no escuro.

De novo, me arrepio. Mas não consigo parar de escrever. Criança com medo do escuro. Clara no escuro. Maria, a mãe, procurando por Clara. De noite. Gritando por sua princesinha que se perdeu na escuridão. Dentro ou fora de casa? Escuro dentro de si. Claudius sabia onde estava Clara. Maldito, filho da puta, ele sabia onde estava a pequena Clara. E ele não falou. E talvez tenha dito para Clara não falar também. Talvez ele tenha dito, vamos pregar uma peça na mamãe.

Clara nem sabia o que estava acontecendo com ela.

Mas ela não gostava.

Ela não gostava da brincadeira do papai.

E papai não brincou apenas uma vez com ela.

Maldito, filho da puta.

Mas talvez Clara, se chegou a crescer, ou se chegasse a crescer, pudesse encontrar algo para canalizar aquela dor. Aquelas faltas. A começar pela falta da infância. Que terminou antes de começar. A busca pela infância, talvez inatingível, seria um dos motivos de sua vida anos depois.

Talvez ela pintasse quadros, como Dafne.

Ou escrevesse um livro, como eu.

Maria, a mãe, deve ter ensinado brincadeiras de mãe e filha para ela. Maria, boa mãe. Maria, que tentou fazer a coisa certa. Maria que quis ser a melhor mãe do mundo. E hoje acredito que ela foi mesmo. Não sei se amanhã vou acreditar nisso. Mas hoje acredito.

E acredito que se Dafne pode pintar, eu posso escrever.

Para encontrar essa infância que se perdeu.

Assim como a vida, que ainda existe. Sim, a vida existe.

Existe em todas nós, meninas.

21:50

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 143



Quarta-feira, 12 de agosto de 2014

21:27

Você vai dizer que estou brincando, que sou forçada. Mas: está chovendo. Chove depois de um dia cinza, lindo, como eu gostaria que fossem todos os dias do ano. Fez aquele frio que me remete a um lugar seguro e bom. Frio, dia cinza. Chuva. Talvez esta história termine em um dia de chuva, com todos mortos depois de um incêndio. Mas talvez a chuva traga algo de bom, algo que no dia de hoje eu poderia chamar de esperança, e talvez o fim que mais temo e do qual fujo, que me amedronta noite após noite, embora finja que não, seja mudado.

Mudar o futuro.

Mudar o que aconteceu.

Me arrepio quando escrevo essas coisas. É só uma historinha, não é? Maria, a mãe, a pequena Clara. Jonas, irmão de Clara, e Marcos, que é primo, mas também irmão. Os outros acho que não valem um níquel, embora não sei se posso julgar meus personagens, se fui eu mesma que criei.

São criação, é apenas mentirinha, não é?

Sabby me convidou para uma dança. Dancei com Lady Brownie e foi lindo, mas era apenas um sonho, como às vezes acho que é tudo isso. Mas se eu soubesse dançar nesta vida, e só porque não vou fazer isso, poderia imaginar uma dança nesta chuva.

Não posso deixar de registrar que Clara gostava de deslizar pela grama encharcada, em dias de chuva.

Maria chamava seu nome, dizia para ela voltar.

Mas talvez ela tenha deixado a filha brincar, ficar mais um pouco.

Talvez Jonas e Marcos estivessem junto.

Brincando.

Felizes.

Tenho vontade de chorar quando penso no quanto eles foram felizes nessa chuva. E talvez tenha havido outras chuvas. Talvez a chuva não seja o fim de tudo, afinal. Talvez Claudius tenha ficado com a princesa Clara, em um armazém abandonado, um castelo do qual ela não conseguiu fugir. E talvez fosse um dia de chuva. Meu deus, talvez ela quisesse gritar, ou tenha mesmo gritado, mas estava chovendo. Só ouviram os pingos.

O céu chorava, enquanto escrevo, como chora hoje, e eu mesma tenho vontade de chorar.

Mas por algum motivo que não consigo explicar (Sarah disse que “isso que não consigo explicar” é sempre inconsciente, pulsões de vida ou de morte e aquelas loucuras dela), acho que vai passar. A dor mais funda vai passar. A chuva leva ela para longe, o céu negro lava minha angústia. E como diz Dafne, a gente até pode acreditar que é feliz.

Por que não? Uma chuva sem trauma, apenas com uma coisa boa, mesmo que eu não saiba dar nome para essa coisa. Algo bom. Existe uma música, uma orquestra, uma melodia, um uivo, um chamado, um suspiro, um sopro de vida, que é tudo isso. Aquilo que não consigo dar nome. Aquilo que me jogaram e de alguma forma tenho que devolver para o mundo.

Por isso escrevo.

Vejo o olhar de Clara perdido na janela, olhando para a chuva.

Vejo o mesmo olhar no rosto de Maria, a mãe. Atrás do vidro, distante da chuva.

Elas eram muito parecidas, só agora percebo.

Mãe e filha.

Meus amores.

Me arrepio quando escrevo isso.

E não tenho mais vontade de chorar.

Obrigado, chuva.

Obrigado.

Não tenho mais vontade de chorar.

21:47