quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 155





Quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

17:14

Daqui a pouco tudo termina. Ou nada termina, é apenas a virada da meia-noite e um ano novo, que pretendemos novo, virá. A coisa em meu peito ainda continua. Imagino que essas malucas daqui de dentro, e imagino que as malucas do lado de fora também, não queiram ouvir Maria Chorando no dia em que o mundo está repleto de esperanças, que explodem pelo ar e faíscam pelo céu negro. Por isso escrevo. Escrevendo ninguém pode me calar, mas talvez eu cale as vozes dissonantes do meu espírito, que doem se não venho aqui colocar tudo em palavras. Colocar em palavras é como tirar um armário das costas, mas um armário que sempre volta, e por isso preciso continuar colocando estas palavras neste muro de frases que ninguém vai ler.

Que bom que ninguém vai ler, assim posso escrever o que quiser. Acho que Sarah, a psicanalista doida que me colocou nesta viagem, já sabe disso e sabe também que talvez, depois de muitas e muitas palavras, sempre sangradas aqui, alguma luz vai aparecer. Às vezes acredito nisso, mas agora apenas escrevo – até os dedos quebrarem, dizia Tchekhov. Sim, às vezes leio sobre escritores, talvez para ter algo a dizer aqui. E talvez porque assim cheguemos, meio sem-querer, ao mistério da pequena Clara.

Que na verdade é o mistério de Maria, A Louca Que Escreve Para Se Manter Viva. Que Escreve Para Lembrar.

Cris está jogada em um canto. Suponho que ela está com um humor parecido com o meu hoje. Espero que ela não vá se matar hoje, nem ninguém mais aqui, e se alguém estiver pensando nisso, neste exato momento, que deixe para outro dia.

Podemos mudar de ideia.

Vi a sombra de Lara hoje. Às vezes algumas imagens aparecem nesta mente sem memória assim, do nada, tipo do outro mundo. Fantasmas do inconsciente, pensei agora. Mas ela estava bonita, arrumada para... talvez uma festa de réveillon. Talvez uma festa na casa de Maria, a mãe. Sua irmã. Talvez levasse o filho sem pai – ou que todos achavam que não tinha pai, sem que Maria soubesse que o pai estava logo ali, casado com ela, comendo a maninha e sua filha Clara.

Meu deus, que história horrível.

Juro que nunca, sem nenhuma exceção, penso no que vou escrever, e assim, sei lá de onde, essas palavras surgem em minha mente e tenho que colocar tudo aqui. O filho sem pai, cujo pai Claudius não o assumiu porque era casado com Maria e médico intocável, como todos os médicos, se chamava Marcos. Lara deve ter levado o pequeno Marcos para a festa de réveillon na casa de Maria. Por isso, Lara estava arrumada hoje. Não sei se Claudius já tinha voltado a beber. E se ele recaiu no réveillon com Lara, e aquela cena que sempre imagino, de ele bebendo em Lara, foi em um réveillon?

Nunca tinha pensado nisso.

Talvez o inferno de Clara tenha começado em uma noite de réveillon. Maria deve ter ido dormir antes, porque estava com depressão. Ou talvez tivesse sido internada naquela mesma noite. Não foi uma festa muito agradável, como talvez muitas não fossem. Maria, a mãe, internada em um hospital na noite de réveillon.

Clara sem mãe.

Jonas sem mãe.

E Marcos?

Se foi isso o que aconteceu, e deve ser, porque estou escrevendo apenas o que minha mente dita, Marcos também passou a noite sem mãe. Porque Lara estava se divertindo com Claudius.

Paro para respirar. Suspiro. A coisa vai indo embora, bem aos poucos. Acho que o armário está um pouco mais leve.

Cris sem mãe.

Eu sem mãe.

Todas nós, no dia de hoje.

O armário volta às minhas costas. É apenas a virada da meia-noite. O abismo estará lá, ainda esperando eu pular ou encontrar alguma forma de desviar. Mas se todas aqui somos, de alguma forma, loucas, talvez eu aceite minha loucura por hoje. Só hoje. E embarque nesta de ter esperanças faiscantes que voam e brilham pelo céu. Sim, só hoje. Maria Esperançosa. Maria Que Acredita Em Novos Começos.

E quem sabe alterarmos o fim desta história, ou um novo começo depois do fim de tudo.

Feliz Ano Novo, garotas.

17:39

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 154




Quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

01:33

Talvez nesta data ano passado eu tenha vindo para cá e escrito, não lembro. Encontrei Sabatha hoje no corredor, ela quase escondida atrás de seus cabelos gigantes que, hoje percebi, parecem uma rede com correntes, cipós, qualquer coisa assim, vestindo seus braços de leite desnatado, e ela disse para eu escrever hoje. Disse que achava que a história que estou contando deve estar rumando para o fim. Não sei. Na verdade, hoje jantamos quase todas, eu e as garotas daqui, até um ou outro garoto, juntos, confraternizando. Mesa farta. Mas tudo o quanto pensei foi em vir aqui escrever. Talvez defender este mundo que é só meu. Este mundo do qual sou dona, sou a rainha e a princesa.

A mãe e a filha.

De novo, não sei de onde essas palavras surgiram. Mas surgiram. Sarah, que me deu um livro de presente hoje, de uma tal Elisabeth Roudinesco, acho que para eu entender melhor as teorias daquele velho tarado – e sei que isso deve ser um sinal, ela querer que eu leia essas loucuras todas, talvez para decifrar a esfinge que habita em mim – sempre me diz: escreva o que lhe vier à mente. Escreva, se você não quiser (ou não conseguir, suponho) falar.

A cura está na palavra.

Eu não sei. Apenas escrevo, ninguém vai ler, que diferença faz? Hoje comemos todas juntas no refeitório. Sei lá por quê, mas imaginei um pinheiro na casa de Clara com bonequinhos de chocolate pendurados. Talvez Maria, a mãe, estivesse enfeitando a árvore. Talvez o Papai Noel ainda não tivesse voltado a beber. Talvez o inferno ainda não tivesse começado. Talvez em minha fantasia aquela pudesse ter sido uma noite feliz. Com renas, trenó e tudo mais que vier. Lady Clara e seu irmão Jonas, junto com o primo Marcos, ou talvez ainda nem existisse primo Marcos, filho da Tia Lara, talvez a Tia Lara ainda nem tivesse começado a se engraçar com o Papai Claudius, e talvez aquela noite tivesse sido apenas uma família feliz comemorando: Claudius, Maria, Jonas e Clara. Sim, em minha história hoje, e só por hoje, eu gostaria que fosse assim. Sabby disse que eu poderia ter um despertar hoje, por isso eu deveria escrever. Quem sabe aparecesse alguma luz. Queria ser capaz de criar mais cenas assim: uma família feliz. Que não sei se é real ou apenas ficção. Mas na minha mente de escritora iniciante, sim, quero acreditar que houve uma noite feliz.

E então que alguém bate em minha porta. Paro de escrever. Quem seria a esta hora da madrugada, depois que os fogos do lado de fora cessaram e imagino que minhas colegas-zumbis tenham ido dormir?

Olho para o assoalho e vejo um desenho. É uma pintura de Dafne. Fico a encarar por alguns segundos. A figura vai se desenhando ante meus olhos que, assim que conseguem decodificar o que significam, lacrimejam. É um boneco feminino, de vestido, e uma criança, que parece estar voando. Nenhuma tem rosto. Igual minha história. Mas sei quem são: mãe e filha. E mesmo não vendo seus rostos, sei que estão felizes. Suspiro, tentando conter o choro. Abraço a pintura forte no peito, como quem abraça uma mãe.

Ou uma filha.

Me arrepio e começo a chorar. Obrigado, Daf. Foi o melhor presente que eu poderia ganhar na noite de hoje. Os pensamentos cessam. Por um segundo, volto a acreditar que há um céu além deste teto, e talvez uma lógica que conserte tudo no fim das contas. Vejo a assinatura de Dafne e agradeço, uma vez mais:

Feliz Natal, Maria.

01:58

domingo, 21 de dezembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 153



Domingo, 21 de dezembro de 2014

01:00

Faz pouco choveu.

Senti a chuva. Vi os relâmpagos que transformaram a noite em dia, senti o vento frio que me trouxe esperança, os pingos que refrescaram esta alma sempre enferma. A chuva que me convida a escrever. Não chove mais agora, enquanto escrevo em meu quarto-cela com a porta fechada, depois de ter jantado com Cris, só nós duas naquela sala deserta. Mas choveu o suficiente para trazer um pouco de esperança.

Talvez esta história termine em um dia de chuva e a chave que procuro, e que me arrepia só de escrever pensando nela, e me traz de volta à memória, a memória que não lembro, o piano, talvez essa chave esteja lá.

Confesso que passei mal com a ideia de eu poder ser Clara. Ou eu ser Maria, sua mãe. Ou mesmo Claudius ser uma projeção minha, e eu que talvez já tenha sido abusada – e se for isso, sou quase grata por não lembrar de nada – na verdade seja a abusadora. Ou ser Lara, a irmã de Maria, a mãe, tia de Clara, com quem Claudius tinha um caso e um filho não assumido chamado Marcos. Lara, a quem sempre chamo de vagabunda. E se for eu a puta de quem tenho raiva?

Suspiro ao pensar nessas merdas todas.

Mas talvez sejam apenas paranoias da minha cabeça.

A chuva me trouxe paz e no dia de hoje não pensei em nada disso. No dia de ontem, na verdade, porque já passa da meia-noite e uma nova madrugada começa. Acho que hoje também começa o verão. Não gosto de verão. Não sei qual a relação. Detesto o calor e talvez – tenho que escrever isso pois foi a ideia que veio em minha mente neste exato instante – seja porque às vezes ainda penso que esta história também termina com um incêndio.

Todos morrem?

Me arrepio.

Ainda não sei.

Me arrepio tanto que quase paro de escrever.

Mas lá desta caverna sem fim, e talvez seja a caverna do inconsciente, como diria Sarah, vem um som. O piano. E suas teclas que são tristes, mas que hoje também me dão esperança. Talvez esse piano seja o coração desta história: uma dor que se transformou em algo bonito.

O piano que Maria tocava para sua pequena Clara.

Me arrepio uma vez mais.

Suspiro. Tenho vontade de chorar.

Mas não é de dor. Tenho vontade de chorar e não sei se é tristeza. Talvez seja nostalgia. Sim, tenho vontade de chorar.

De saudade.

Talvez seja isto: cada noite que venho aqui escrever, no fundo, e só agora me dou conta disso, é meu desejo, minha ânsia, meu sonho, de algum dia, nem que seja meu último dia de vida, algum dia: ouvir este piano mais uma vez.

01:16

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Novo Twitter

Fiz um Twitter agora. Se quiser, follow me:

@drochareal

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 152



Sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

20:57

Caminhei com a Garota Cheshire, que é toda ela um sorriso, um sorriso com pernas. Ela me fez ver este lugar de uma forma diferente. Ela me mostrou, como uma guia de museu, os arcos que há na entrada, o chafariz que há no centro. Depois me mostrou as árvores rosas e vermelhas. As folhas caídas sobre o chão. Ela não sabia que havia o riacho, e não fomos até lá, mas caminhamos vendo os arcos e o chafariz.

Nunca tinha reparado em nada disso.

Este lugar não é, afinal, um castelo mal-assombrado.

Cheshire me falou em um dia de primavera nublado. As folhas estavam caídas sobre o chão, como no outono que talvez eu mentalize quando venho aqui escrever e o outono pelo qual espero. Quase choveu ou choveu pouco. Ameaçou chover, ameaçou esfriar. Foi o suficiente: devo escrever.

Ela andou lendo uns textos com essas teorias loucas de Sarah. Ela me falou da teoria do trauma, e como acontece algo tão ruim que a gente não consegue suportar, nosso psiquismo inventa artimanhas para nos proteger. E a gente inventa coisas boas dentro daquilo que foi ruim para sobreviver. Acho que é a tal história de tudo de bom estar no outro e tudo de ruim estar em mim. Então, segundo ela, e mesmo que ela não tenha me dito isso eu deduzi, eu devo projetar objetos bons enquanto escrevo, porque houve um trauma que me fez esquecer, porque lembrar dói demais.

Então a história que tento contar, e que nem sei se é mesmo uma história, é uma projeção. Logo, Clara foi abusada por Claudius, e ela tem que criar algo para colocar no lugar. Tipo assim:

A Clara sou eu.

Mas também posso ser Maria, a mãe.

A mãe que cuida, ou deveria ter cuidado, de Clara.

Confesso que achei algo absurdo, mas também confesso que me inquietou. Acho que o termo que Sarah usa é “desacomodar”. De onde tiro essa história que escrevo assim, a partir do nada, a cada noite, sem sequer saber que palavra virá a seguir na frase?

Me incomodou a teoria de Cheshire – e por que incomodou?

Isso ainda não sei.

Não vou ser ingênua a ponto de achar que, depois de todo esse tempo, ninguém sabe o que escrevo aqui. Me arrepio de pensar que essas malucas sabem tudo, mas alguma coisa elas sabem. Talvez, inclusive, algo que não sei. Então penso que existe uma Mitologia de Maria.

Quem sou eu? Por que escrevo uma história tão horrível assim?

Já ouvi inclusive que posso ser o homem que estou descrevendo, e se tenho tanta raiva de Claudius, talvez ele também seja uma projeção de algo meu. Dentro dessa lógica, eu poderia ser Lara, que aliás é um nome parecido com Clara. Lara, a vagabunda.

Não quero falar de sexo.

Não vou mentir, pensar nessas loucuras todas mexeu comigo. Mesmo que ache um absurdo, de alguma forma que ainda não consigo, ou não quero, e não quero porque não consigo, entender, esses absurdos talvez tenham um sentido oculto. Tudo está oculto, não é mesmo?

Talvez esse seja o salto que Sabatha estava falando. Mas Dafne prometeu que eu seria capaz de desviar o penhasco.

Queria segurar na mão de Sarah agora. Mas ela não está por aqui.

Por que será que as mães nunca estão presentes quando a gente precisa delas?

Pausa.

Não sei de onde me ocorreu essa frase. Mas se pensei, devo partilhar. É assim que funciona. Partilhar sem medo nem julgamento. Apenas colocar para fora, e ver no que vai dar. Ou nem ver no que vai dar: apenas colocar para fora.

Estou me sentindo estranha. Clara, Maria, Claudius, Lara, é demais para um dia só. Mas de alguma forma sei que hoje cheguei mais perto daquele penhasco. Quando decifrar a Mitologia de Maria, e um dia sei que vou decifrar, decidirei se pulo ou desvio.

E então encontrarei minha paz.

21:22

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 151



Quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

22:21

Ouço trovões. Lá fora chove. Devo escrever. Não tão forte para trazer o frio de volta, mas suficiente para me trancar aqui. E retomar esta história, cada vez mais distante – e incrivelmente perto, tanto que mal posso descrever.

Nesses dias que fiquei sem vir aqui, me perdi caminhando aqui pelo campo, e já me perdi também pelos corredores deste lugar. Aquela garota que estava de pijama no outro dia me perguntou para onde eu estava indo. Eu disse que não sabia, perguntei onde ia dar aquele caminho, eu, Maria Perdida. Ela sorriu e disse que qualquer lugar servia, já que eu não sabia onde queria chegar.

Fiquei pensando naquilo.

Ela tinha um sorriso tão grande, aliás, era só sorriso, que lembrei do gato Cheshire, da história de Alice. Essa garota era meio índia, eu que nunca consigo descrever as pessoas. A índia do pijama e do sorriso gigante. A Garota Cheshire. Ela disse que eu era engraçada. Não entendi. Não vejo graça em mim. Mas talvez tenha sido um sinal.

Sarah me disse que quando alguém é abusador é porque já foi abusado, e quando um pai abusa de sua filha, a criança cinde com a realidade, porque o pai é o que cuida, o que cuida dela, o que ama ela, e aliás talvez seja o que ela acredite que ele estivesse fazendo: papai faz coisas com a filhinha no banho porque ele ama ela. Papai é tudo de bom e tudo de ruim fica com ela.

Está acompanhando o raciocínio?

Claudius que amava a pequena Clara no banho e quando ela talvez tenha dito para Maria, a mãe, que papai estava fazendo coisas com ela, Maria pode não ter levado a sério. Ou talvez Maria não conseguisse suportar a ideia de seu marido não deixar sua filha ser criança. Porque Clara não foi criança. Ela não teve infância. E talvez o sentido de tudo isso, dessa história de merda, seja reencontrar, ou criar, a infância que Clara não teve.

Sabby diz que eu tenho que pular no abismo, que tenho que segurar em sua mão, ou na mão de Sarah, e pular. Dafne acha que vou encontrar um meio de desviar do abismo. Talvez o pular do abismo seja justamente não pular. Apenas mudar de caminho.

Dói escrever, dói lembrar o que não lembro, ou o que acho que não lembro e talvez Sarah dissesse simplesmente: está tudo recalcado. A história da pequena Clara é um recalque.

Talvez a de Maria, a mãe, também.

Mas se estão recalcadas, em algum lugar desta caverna sem fim, deste asilo, deste hospital, deste fim de mundo, deste lugar do além, a verdade se esconde.

E vou escrevendo, assim sem pensar, jamais pensando ou me programando porque foi isso o que Sarah disse que era para fazer, malditos psicanalistas: apenas escreva. E confie.

A chuva talvez aumente. Sinto um vento frio que para mim é sempre esperança. E enquanto eu puder escrever essa palavrinha, tão pequena e tão imensa, linda em sua loucura, naquilo que ela promete e esperamos que se cumpra, algum dia, sei que chegarei ao fim desta história.

E Clara, enfim, terá sua infância perdida de volta.

22:39 

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 150



Quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

22:43

Ontem choveu.

E não escrevi.

Hoje o dia amanheceu lindo. Cinza e frio como em um sonho de família feliz. Ainda não tive tempo de me arrepiar para escrever isso ou qualquer outra coisa, mas quero que a chuva e o frio voltem. Então, escrevo. Existe uma mágica que ainda não entendo e que parece reavivar esse fogo cada vez que me tranco aqui e escrevo. A Mágica de Maria. O piano volta em meus sonhos.

Lindamente triste, ou tristemente lindo, diria Dafne, a garota que parece que vai se quebrar ao meio, que pinta para preencher suas fendas. Que pinta para se sentir viva. Para dar um sentido à dor, que é dela. Que é minha. Que é de todas nós.

Garotas com fendas.

Acho que o mundo um dia será delas.

Lady Ballet apareceu por aqui. Estava arrasada. Me disse que tinha recaído, que tinha vomitado de novo, que estava se sentindo gorda. Mas você é magra, eu disse, e soube na hora que ela não poderia me entender. Talvez me entendesse, mas não ia acreditar em mim. Então ela me perguntou, porque como presente de aniversário eu deixei ela ler um pouco do que escrevo, e porque sei que dói nela como dói em mim, se Claudius, quando recaiu depois de dez anos em sobriedade se sentiu como ela agora.

Nunca pensei nisso.

Em minha cabeça de péssima escritora – e agora sim me arrepio – Claudius só queria se divertir com a cunhadinha, porque é o que ele já vinha fazendo e naqueles grupos que talvez ele já tenha levado a pequena Clara, antes do pesadelo começar, diziam: a recaída começa bem antes de se tomar o primeiro gole.

Acho que a lógica deles é algo como “você já está fazendo merda, então uma merda a mais ou a menos, talvez não faça diferença”.

Muita merda, acho que é o que eles quiseram dizer.

Para Clara fez diferença.

Doutor Abusador Que Espero Estar Queimando No Inferno.

E sei que para Maria, a mãe, fez diferença. Não sei se ele já batia nela antes de voltar a beber. Não sei se ela sempre se internava em hospitais antes disso.

Talvez ela já tenha tentado se matar.

Me arrepio uma vez mais.

Não sei se ela já tinha tentado antes ou depois que Claudius voltou a beber.

Clara tentou se matar.

Pausa para respirar. Meu deus, que história horrível. Mas não consigo parar de escrever. O piano me ronda e enquanto ele estiver tocando dentro da minha cabeça, e talvez toque para sempre até eu descobrir como termina esta história, perdida na cidade-fantasma do inconsciente, devo continuar escrevendo.

Não sei por que comecei com essa história de querer morrer.

Notei que Lady Ballet tinha pequenos cortes nos pulsos. Roupas largas, talvez para que os outros não vejam como ela está magra. E cortes nos pulsos.

Iguais aos meus.

Talvez Maria, a mãe, tenha se cortado.

E Clara, aquela princesa linda, também. A pequena Clara que se cortava. Que talvez também tivesse essa coisa de colocar comida pra fora, de deixar entrar, mas ter que sair, e sei que Sarah tem explicações para isso, algo relativo ao afeto, que não pode entrar e se entrar deve sair. E sinto quenturas na garganta e no estômago, que já não sei se são de Clara.

Ou minhas.

O piano ruma para o fim.

Dafne disse que estou chegando perto daquele abismo. Mas talvez eu decida parar. E decida não pular, afinal de contas. Talvez o fim que imagino seja outro. O fim para o qual rumo, e que ainda não está escrito e se não está escrito pode ser mudado.

E se é isso que se chama esperança, obrigado Daf.

Talvez haja uma maneira de desviar do penhasco.

Sim, talvez haja.

A chuva há de vir.

E vou estar esperando por ela.

23:05

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 149




Quinta-feira, 27 de novembro de 2014

21:39

Hoje vim para cá com vontade de escrever. De compartilhar com seja lá o que houver do outro lado essa coisa que nunca sei nomear e que me faz sentir.

Viva, talvez.

Se é isso que chamam de felicidade, então hoje estive feliz.

Feliz depois de tudo o que passei e não, não me lembro o que foi. É claro que houve algo que me fez esquecer de tudo. E doeu, e dói até hoje. Mas às vezes a dor passa. Ela tem passado quando escrevo e fico quase grata por ninguém ler isso aqui, assim posso ser...

Eu mesma?

Ouço violinos.

Lindos como um corte no pulso.

Como rosas cujos espinhos cortam e rasgam. Mas não deixam de ser rosas por causa disso.

Tenho vontade de chorar.

Mas então espero. E continuo escrevendo.

Dafne me contou coisas. Ela disse que estava feliz. Que a história do pontinho de luz no escuro se transformou em um céu estrelado e agora é esse céu que ela vê. Hoje, amanhã, não sabemos.

Clara, a pequena Clara, talvez também tenha encontrado seu céu estrelado. Quem sabe, Maria, a mãe, também.

Ouço violinos e não sei de onde eles vêm. Vejo rosas pela calçada, pelo campo aqui perto, como um tapete vermelho que se espalha até o horizonte. Estou tendo um delírio? Quem se importa? Foda-se, é bom. Me faz sentir em paz. E me dá força para chegar mais perto daquele penhasco. Um dia de cada vez.

Qual foi o grande trauma que me fez esquecer de tudo?

De novo, tenho vontade de chorar. E me arrepio, e quero parar de escrever. Mas não consigo.

É lindo como um corte no pulso e sempre que escrevo isso, olho para as cicatrizes em meus braços. E as queimaduras.

Queria que estivesse chovendo. Mas não está, embora este vento me sugira: esperança. O vento quando sopra em um corte, alivia. Não é uma metáfora interessante? Dor e esperança estão interligadas, nesta história que vou desenterrando sei lá de onde a cada noite que fico presa aqui. Uma solitária livremente escolhida, embora ainda não ache que tenha escolhido tudo isso.

Ou será que sim?

Sarah insiste com esse papo de inconsciente, e tudo o que aquele velho tarado fez ela e um monte de gente doida acreditar.

Mas e se ele estiver certo?

O maldito homem alto de cabelos lisos e negros que demorei tanto para batizar.

Se alguém passou por um abuso, não consegue simbolizar.

Me arrepio uma vez mais.

Deus, que não seja este o fim que entrevi agora.

Por favor, Deus, se existe mesmo algo aí nisso que chamam de céu: que não seja esse o final que entrevi agora.

Maria, a mãe, talvez tenha sofrido abuso e como ela ficou quieta, ou falou e não acreditaram, a desgraça foi passada para a geração seguinte. Claudius, maldito seja, deve ter tido antecessores. Mas quero acreditar, porque sou eu que invento esta merda de história, e eu deveria escolher o que acontece ou não, mas meus personagens parecem ditar o que acontece e não eu, a história me ensina como quer ser contada, eu, péssima escritora, ainda assim quero acreditar: essas duas ainda podem encontrar um sentido para toda a dor que aconteceu.

Maria, a mãe, contava histórias para Clara. Talvez ela escrevesse, talvez não. Clara talvez, assim que aprendeu a escrever, também inventasse histórias. Mas talvez tenha perdido a capacidade de simbolizar assim que papai começou a ver filhinha como sua putinha.

Filho da puta, maldito.

Ele que não se contentou com Lara, vagabunda dos infernos, teve que fazer da sua filha um brinquedinho. E se foi depois que ele voltou a beber, depois dos dez anos, quando ele estava se divertindo com o champanhe no corpo de Lara, mais novo que o corpo de Maria, a mãe, sim: então Lara teve culpa no que aconteceu com Clara depois.

Que merda de história, comecei a falar de poesia e voltei a esse miserável, que espero que esteja queimando no inferno.

Claudius morreu?

E Maria, a mãe?

E a pequena Clara?

Eu não sei. Apenas queria retomar a poesia. Apagar tudo isso. Começar de novo. Inventar um novo final. Quem sabe um novo começo. Uma nova história.

Para todas essas garotas com fendas que estão por aí e que talvez me leiam escondido. Garotas com fendas. Acho que é isso. Escrevo para mim, mas agora percebo: não é só para mim. Também escrevo para dar um sentido a dor que, hoje começo a entender, não é só minha.

E se eu conseguir encontrar um sentido para tudo isso, talvez elas também possam.

E se é isso que chamam de amor, então Maria, a Louca Que Escreve Trancada No Quarto E Que Se Arrepia E Tem Vontade De Chorar, pode aprender a amar.

22:07

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 148




Terça-feira, 25 de novembro de 2014

22:01

Ontem choveu e não escrevi. Não sei se foi isso. Hoje senti o peito apertado, uma raiva de querer dizer para o mundo, carinhosamente: vá se foder. Será a falta da escrita? A falta de sangrar aqui? A falta de chorar um pouco mais? De gritar, até porque quando grito pelas palavras escritas ninguém ouve, mas meu espírito enxuga suas lágrimas, e às vezes cansa suas cordas vocais do coração, será isso? Porque dói. Mas é uma dor boa.

A dor que cura.

Sarah disse que a gente pode escrever para limpar os pensamentos.

Para organizar o caos.

O caos dentro de mim.

As palavras vão se acumulando e a dor vai ficando lá para trás, no começo da frase, para onde não olho mais e vou seguindo em frente. Sem raiva, sem medo. Ou com tudo isso, mas com palavras que vou tirando não sei de onde, e ainda não entendo qual a mágica que me faz escrever, talvez a mágica daquela música que sugere um lugar bom, porque existe esse lugar, e escrevo pensando nele, canto e danço, se eu cantasse e dançasse, pensando em como ele é. Como será, o lugar que fica no fim disto tudo.

Lá onde está a pequena Clara.

Pensei se Lady Ballet dançava por esse motivo.

Dafne mostrou uma de suas pinturas, uma mulher deitada, linda, em sua incompletude, naquela dor que rima com amor. Acho que escrevo para garotas com fendas. Como Daf, Sabby. Lady Ballet, provavelmente.

Às vezes isso tudo parece um Hino à Depressão.

Mas sei que de algum lugar, Clara, se chegou a crescer, deve ter tirado forças para seguir em frente. Penso nisso enquanto escrevo. Maria, a mãe, feliz, mas tristonha, ou uma tristonha feliz, talvez tenha tirado forças também, no meio da solidão em uma das várias vezes em que foi internada. Elas sabiam que existe algo na dor que só quem já compartilhou dela pode entender. E talvez elas também tenham se esquecido de onde colocaram, depois que esconderam: sua dor.

Aqui dentro faz calor. Não gosto de calor. Talvez este texto, sempre horrivelmente mal escrito, tivesse saído melhor se eu tivesse escrito ontem. Mas talvez não existisse, aliás, certamente não existiria, se eu tivesse escrito ontem. Escrevo, choro, grito e quero explodir: hoje. Ontem foi ontem. Escrevo o que sou agora e só escrevo porque sei que ninguém vai ler. E mesmo que alguém leia isso aqui escondido, por que perderiam seu tempo com esta merda?

Por que perderiam seu tempo comigo?

Talvez haja um motivo. Quer dizer, é claro que há. Hoje outra dessas loucas, porque a história que tento esconder a cada noite parece querer criar asas e sair pela janela, me perguntou qual o sobrenome da família de Clara. Tipo, poderiam fazer um genograma, como já devo ter pensado um tempo atrás, e essa doida me veio com essa: qual o sobrenome da família de Clara?

Nunca tinha pensado nisso.

Achei uma pergunta perturbada de uma garota perturbada. Outra garota com fendas.

Mas talvez aí esteja um dos segredos desta história.

Se eu descobrisse um nome a mais, talvez eu estivesse salva.

Um nome a mais, ó meu deus, e descobriria como termina a história de Clara.

De novo, me arrepio.

O que significa que estou no caminho certo.

Sabby me contou que anda de olho em um desses malucos. Disse que ele gosta de poesia, que foram feitos um para o outro, que são almas gêmeas, parecem ler a mente um do outro. Ainda não sei se isso é real ou está apenas em sua mente delirante – mas se for, e daí? Ela pareceu feliz e isso, por hoje, basta para uma garota com fendas.

Um nome e um sorriso.

Acho que é tudo do que precisamos no dia de hoje.

Enquanto respiramos, aliviadas, na esperança de estarmos indo, não sei e não importa para onde.

Rumo ao penhasco. Que nos chama. Que nos pede um mergulho.

Mas que no dia de hoje, acredito: vai nos acolher.

22:23