sábado, 28 de dezembro de 2013

Depois do Nanowrimo – Dia 45


Você disse que sou uma pessoa amarga. Sem fé na vida. Que não acredito em mais nada. Nunca tinha pensado nisso. Apenas escrevo, e cada dia que passo sem escrever, fica mais difícil retomar o fio condutor desta narrativa, seja ele qual for. Quase todos os dias penso em desistir. Seriam todos os dias, mas às vezes me esqueço – me esqueço de que quero desistir, e se é isso que chamam de esperança, então ainda tenho um pouco de esperança. Desistir da vida? Desistir da história, mas talvez desistir da história, desta história que é minha, talvez em algum nível seja desistir da vida. 

Hoje é a 45ª noite que escrevo e não seguidamente porque – você sabe – sou uma péssima escritora. Maria Que Não Sabe Mais O Que Fazer Da Vida E Por Isso Escreve. Mas de alguma forma a escrita me afasta da loucura e há pouco escrevi que é isso que me mantém viva. Quem sabe? Mas por algum motivo, e seja ele por que quero que a dor passe ou algum dia vou querer sair do outro lado e perceber que foi apenas um sonho ruim – é isso, apenas um sonho ruim –, escrevo.

Eu disse em alguma dessas noites perdidas no tempo, nessas em que mais uma vez fiquei trancada aqui e tentei construir essa historinha a partir do nada, que o pai de Clara voltou a beber depois de dez anos. O pai de Clara, até onde sei e não posso estar errada quanto a isso, era o moreno alto de cabelos lisos cujo nome já desisti de tentar lembrar. Digo, inventar. Temos Lara, sua irmã, o garoto Jonas – Jonas que é o mesmo nome do meu irmão, e só coloquei esse nome porque, não canso de repetir, sou uma péssima escritora, incrivelmente sem criatividade. Mas havia um outro garoto. Acho que Clara tinha um irmão, porque em minha mente esse outro garoto era moreno, e era pequeno. Que droga, até eu estou me perdendo nessa maldita história. Esses dias disse para a Sarah que ia parar de escrever, que ninguém ia ler mesmo, que diferença ia fazer?

– Se você parar de escrever, não saberemos o que acontece com Clara.

Por algum motivo que não posso, ou não entendo ou não queira entender, comecei a chorar quando Sarah me disse isso.

Mas assim que as lágrimas terminaram de me cortar e cicatrizaram, voltei a escrever. 

Não sei por que o pai de Clara voltou a beber. Não sei como ele era antes de voltar. Talvez – talvez, eu não sei – ele se controlasse, até tentasse ser algo que talvez fosse, talvez não fosse. Mas em minha mente ele já esfregava Clara demais no banho, e talvez Clara não percebesse isso, mas – ela não entendia. 

Meu deus, ela não entendia o que estava acontecendo com ela. Ela era apenas uma criança. E acho que ela sentiu culpa por usar roupas curtinhas, por usar saia. Mas ela não podia saber. 

Meu deus, ela era apenas uma criança.

Sarah me disse que ser criança e ter infância não são a mesma coisa. 

Clara era uma criança.

Mas ao escrever isso percebo que ela não teve infância. 

E então começo a chorar de novo.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Depois do Nanowrimo - Dia 44

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01:04

Você diz que estou atrasada alguns dias. Maria Atrasada, porque não escrevo todos os dias. E bem quando estou decidida a jogar esta história mal escrita no lixo, eis que surge a sua voz me cobrando: onde estão os outros trechos, cadê essa droga de novela? Veja, já estou até classificando isso que estou tentando fazer de novela. Hoje decidi variar. Me tranquei aqui, e é começo de madrugada.

Estou com uma taquicardia. Raiva? Talvez. Vontade de quebrar tudo? Pode ser. De xingar todo mundo? Sim, ia ajudar. Mas como quem ainda não dormiu, está para dormir neste lugar, nesta hora anódina em que o tempo parece parar, tudo o que me resta, como geralmente resume o tudo que me resta sempre, é escrever.

Pensei agora pouco no garoto, porque havia um garoto nesta história. Eu acho, porque não tenho certeza de nada – e porque sou uma escritora muito da chinfrim – que ele era irmão de Clara. Talvez não irmão de pai e mãe, talvez nem irmão. Ele podia ser filho de Lara, e acho que o nome dele é Jonas. 

Se você tem uma memória razoavelmente razoável, vai lembrar, porque acabo de me lembrar disso, que em uma dessas noites me referi a você, a voz na minha cabeça, meu interlocutor nem sempre imaginário, a voz que às vezes parece a voz de Sarah, como sendo Jonas. 

Meu irmão Jonas. 

Lembra?

Sei lá, mas foi o nome que me apareceu para batizar aquele garotinho e como não tenho nenhuma criatividade, vou chamar o garoto desta história de Jonas. O que tem ele? Eu também não sei, mas vou escrever até que meu inconsciente dite alguma coisa. Sarah insiste em eu simplesmente escrever, porque a partir disso – de uma história que não vai dar em nada – talvez eu descubra como vim parar aqui. Eu também penso em um acidente que talvez tenha me feito esquecer de minha vida pregressa. Mas isso seria demasiado óbvio, e só se esta história estivesse sendo contada por outro autor que não tivesse a menor habilidade para contar histórias. 

Pois bem, o nome do garoto é Jonas. Vejo ele tomando banho em um boxe. O homem moreno e alto de cabelos lisos fazia com ele o que fazia com Clara? Isso eu ainda não sei. Ele era filho de Lara, acho que era isso. Lara era irmã de Maria.

Suspiro. Maria, como o meu primeiro nome, e não sei se tem a ver com o fato de eu não gostar do meu primeiro nome, mas suspiro de novo, e cada vez que lembro que inventei uma personagem que era casada com aquele homem, uma personagem que passou por aquilo que intuo que ela tenha passado, e que tem o mesmo nome que eu, me dá vontade de chorar.

De gritar.

De quebrar tudo.

E depois chorar, escondidinha neste quarto, com a porta fechada. Amanhã talvez alguém perguntasse se aconteceu alguma coisa, e eu ia mentir que não, está tudo bem, se melhorar, estraga. Mas se melhorar, não vai estragar. Não há mais o que estragar nesta história. Maria, sem querer, ensinou Clara a ligar o fogão. Tempos depois ela se internou no hospital, de novo. Lara tinha se comprometido a cuidar das crianças, mas teve um caso com seu cunhado. Clara ia cada vez pior na escola. O homem moreno cujo nome não consigo criar era médico e ninguém podia tocá-lo, nem acusá-lo, nem nada. O homem alto e moreno de cabelos lisos, que molestava a filha, era indestrutível. Clara já havia tentado se matar pela primeira vez.

Acredite, não há mais o que estragar nesta história.

01:24

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Depois do Nanowrimo - Dia 41



Você pode achar que estou brincando, mas é verdade: lembro quase nada do que escrevi antes.

Fica cada vez mais difícil escrever, e cada dia que insisto em contar esta história incontável, porque é impossível uma escritora – a menos que seja uma escritora muito ruim, como eu – contar uma história que não existe sequer em sua cabeça. Eu não me lembro dos nomes.

Digo, não consegui inventar nomes.

Mas acho que tinha Marco, que era o irmão, e tinha Lara, que era a irmã. A irmã de Maria, a mãe de Clara. Hmm, talvez montar uma arvorezinha genealógica desta família me ajudasse um pouco. Temos o homem magro e alto de cabelos lisos e negros, que é o pai. Pelo menos imagino ele sendo o pai. Temos Maria, e essa supõe-se que seja a mãe. Uso esses termos porque ainda não tenho certeza, mesmo depois de 41 dias escrevendo quase – quase – todos os dias, ou todas as noites, que esta história é o que aparenta. Eu disse que Lara era a irmã, mas não podia ser a irmã do homem moreno, a menos que eles tivessem uma relação incestuosa – o que também não é impossível, levando em conta o que ele fazia com a pequena Clara. Mas prefiro pensar que Lara era irmã de Maria, a mãe, e sei que ela teve algo com o homem moreno. Deve ter sido assim: Maria foi para o hospital, ainda não sei bem por quê, e Lara se mudou para casa para cuidar de Clara. E havia um menino, que em minha imaginação era irmão de Clara. 

Esse menino era Marcos? Ou havia um outro menino? Podia haver um filho não assumido, considerando que duvido que Maria soubesse que seu marido tivesse um caso com sua irmã. Será que foi por isso que ela foi pro hospital? Cogitei depressão pós-parto, mas Clara não era mais tão bebê quando isso aconteceu. A menos que Maria tivesse ido para o hospital outras vezes, o que é bem provável. 

Não consigo ser escritora, nem detetive. Maldita hora em que fui dar ouvidos a Sarah e comecei a escrever tudo isto aqui. 

Mas em minha fantasia, e quero muito estar errada, e acho que eu posso mudar o destino, pois sou a Dona da História, e nem você nem eu temos a noção do quanto sou a Dona da História, pelo menos ainda não, mas se não estiver, é possível que Maria tenha entrado em depressão e se internado no hospital porque enfim descobriu o que acontecia debaixo de seu nariz, em sua própria casa, e mãe, uma mãe jamais permitiria isso, mas aí já estava acontecendo, e talvez ela tenha se tocado que já estava acontecendo, e talvez ela tenha tentado impedir, talvez tenha tentado fugir, fugir elas duas. Uma dor tão grande quanto só uma mãe entenderia.

Meu deus, será que foi assim que aconteceu?

Depois do Nanowrimo - Dia 40


Continuo triste.

Pareço uma garotinha escrevendo em seu diário, e nem escrevendo todo dia estou, mas o fato é que continuo triste.

Maria Melancólica. Sabe que esta terapia deve estar fazendo efeito, porque quase esqueci que não gosto do meu primeiro nome, de tanto que me chamo por ele: Maria Alguma Coisa, Maria Sei Lá Mais O Quê. Maria, cada dia um novo dia, ou melhor: cada noite uma nova noite. Tentei escrever de dia. Não é a mesma coisa. Tem uma mágica na noite que só existe depois que o sol se põe, e ver o sol descer na tardezinha é como descer pelo escorregador, a promessa de que há algo lá na frente, mesmo que a gente ainda não consiga pensar, apenas sente, apenas vive, desce o escorregador, vê o sol descer e bum: é noite e tenho que escrever. Sem a menor vontade, sem a menor ideia do que vou escrever, como está acontecendo religiosamente every single day (viu que pedante?).

Mas imaginar uma metáfora com um escorregador me fez de lembrar de Clara, a doce Clara que, mesmo que eu não soubesse, parece ser o motivo de estarmos aqui. Pelo menos é uma personagem sobre a qual consigo discorrer. O pai-monstro já desisti de tentar batizar. Vai ver nem ela lembrava. Li em um desses pedaços de texto que Sarah deixa por aqui, imagino que estrategicamente, que quando alguém, especialmente se for criança, sofre um trauma considerável (e afinal, que trauma não seria considerável?), ela pode ter amnésia.

Será que é por isso que não consigo batizar esse homem maldito? Porque Clara também não lembrava seu nome?

Mas é só uma história, um personagem, uma droga de um nome.

Maria, Péssima Escritora.

Entretanto, devo confessar que pensar o que recém pensei fez um arrepio costurar pela minha espinha.

Neste momento, em que imagino todos estarem dormindo, os tais que se vestem iguais e que habitam do outro lado desta porta quase sempre fechada, embora, reconheço que não sejam exatamente iguais, nem nas caras, nem nas roupas, mas me parecem ser a mesma pessoa, que é pessoa nenhuma, e me sinto sempre sozinha nesta porcaria de lugar, tomo um leite.

Veja quantas palavras amarrei para fazer uma frase longa na frase anterior: era só para dizer que estou tomando leite agora.

E eu com isso, você me pergunta.

Hoje estava pensando que preciso de você. Não, é claro que o leite não tem nada a ver com isso. Mas preciso de alguém que me leia e que me escute, mesmo que você não me leia nem me escute todos os dias – talvez castigo por eu não estar escrevendo todos os dias. Será isso?

Outro arrepio. Não, não foi um arrepio, foi só uma...

Dor.

Chega de castigo.

Eu não quero mais castigo.

Por favor, chega de castigo.

Vou parar de escrever antes que comece a chorar. 

Talvez eu tente de novo amanhã.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Depois do Nanowrimo - Dia 37

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Eu acho que você deve escrever, pareço ouvir sua voz dizendo.

Não apenas porque talvez eu jamais seja escritora, e não apenas – como toda noite – estou cansada, e não porque – sim, toda noite também – eu não... 
tenha a menor ideia de sobre o que vou escrever. Mas ia dormir sem escrever nada hoje, pelo simples motivo (além dos já citados, não vou ser hipócrita) de que não sei onde o menino Marcos se encaixa na história. Ainda não sei qual seu parentesco com Clara, embora suspeitemos (porque acho que você pensa a mesma coisa) de que se trata de um irmão.

O homem magro e moreno fazia com ele o que fazia com Clara?

Não sei.

E ele já fazia isso antes de voltar a beber?

Acho, porque não me lembro, que já tive essa dúvida antes. Ainda não sei. Mas ontem sonhei com Clara, e ela estava sorrindo, como antes de tudo isso começar tenho certeza que sorria. Ela estava abraçada em um boneco que era maior que ela, um boneco de pele negra. Não sei que material era aquele, suspeito que era um tipo de estofado com recheio de esponja. E ela estava tão feliz. Fazia tempo que não imaginava ela tão feliz. Com um sorriso do tamanho do mundo. Talvez tudo o que eu tenha escrito até agora seja para recuperar aquele sorriso, que parecia ser como uma galáxia abrigando seus planetas, um arco-íris de esperança na sua então inocência de criança.

Ela era uma princesa.

Linda sorrindo daquele jeito.

Abraçada no boneco, como protegendo ele, como orgulhosa dele. Será que alguém tinha orgulho dela? Acho que Maria tinha. E eu tenho, enquanto escrevo isso. Clara, em quem penso noite após noite, a garotinha que me faz escrever mesmo quando estou cansada, mesmo quando não tenho a menor inspiração – o sorriso que vejo na tela da minha mente, por alguns segundos, apaga a dor do mundo.

Queria que apagasse para sempre.

Se ela sorrir de novo, será que apagaria?

Ó, Clara, sorria hoje, sorria mais uma vez. Por você e por mim. Sorria e siga em frente. Sorria e finja que não dói. Porque se você acreditar, talvez eu acredite também.

Você ainda não sabe, mas pensar em você me mantém viva mais um dia. E enquanto escrevo, você também fica viva mais um dia.

Não desista da vida, garotinha. Não desista de você.

Eu não vou desistir.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Depois do Nanowrimo – Dia 32


De novo estou cansada.

De novo tive uma ideia e me esqueci.

De novo passei o dia sem pensar nesta história e tão logo sento aqui para escrever – sem vontade, geralmente sem vontade – algo acontece. Sarah disse que não devo pensar muito na história, apenas escrever e confiar que o inconsciente vai ditar as regras. Mas regras do que, me pergunto, se é apenas uma história que estou inventando enclausurada aqui?

Existe algo de mais nisso tudo que ainda não entendi. Isso é óbvio. Ou acho que seja óbvio. Sei que o homem moreno passou pelo corredor de novo. Ele sorria, mas tem algo de maligno no jeito como ele sorri, e ele segurava Clara, que estava com a cabeça dele entre suas pernas, ela por cima dos ombros dele, como cavalgando um cavalo.

Mas Clara parecia menor. Então talvez aquilo que sonhei tenha sido uma cena do passado, partindo do princípio que ainda não sei quando começa e em que ponto termina essa história. Tenho suspeitas, mas assim como elas vêm, se vão, e continuo escrevendo na tentativa de guardar alguma coisa. Tenho escrito há mais de um mês – 32 dias hoje, ou melhor, 32 noites hoje – mas lembro muito pouco do que escrevi nesse tempo. E sei que o fato de eu me esquecer das coisas assim tão rápido tem a ver com o fato de eu não lembrar como vim parar aqui.

Você sabe. Por isso escrevo.

Estou cansada. Talvez devesse tentar escrever durante o dia. Por que sempre de noite, você já me perguntou. Eu não sei, mas parece que minha existência só tem sentido quando estou escrevendo e por algum capricho divino, ou mania mesmo, isso sempre ocorre à noite.

Hoje não sei mais de Lara, nem de Maria, e tampouco Clara, assim como o armazém, a praça e um certo acidente que deve ter acontecido, e que talvez tenha posto fim a tudo. O que ou quem é tudo, você me pergunta. Alguém morreu?

Sim, acho que sim.

Mas não vou conseguir descobrir isso hoje. Estou cansada e honestamente sem paciência. Vou tentar de novo amanhã.

Mas alguém morreu, e vou dormir pensando nisso hoje.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Depois do Nanowrimo – Dia 31

(pensei em recomeçar a contagem, mas vou manter a numeração para orientar melhor a leitura)


O mundo não acabou ontem, então preciso escrever.

A contagem chegou ao fim.

Mas uma nova contagem iniciou hoje, e de novo o relógio volta a andar.

Todo dia penso em nunca mais escrever.

Em sair deste quarto e voltar para o convívio com aquele bando de zumbis que ficam do lado de fora desta porta fechada. Não acho que fosse fazer muita diferença para eles. Minha autoestima de mulher nunca foi das melhores, e um dia você vai entender por quê. Nem sei se você ainda está aí, e suspeito que não, mas também suspeito que você disse “ela não vai escrever hoje”, e eu não ia mesmo. Mas mudei de ideia. Talvez você seja fruto da minha imaginação, um interlocutor imaginário que preciso acreditar que existe para eu ficar viva mais um dia. Tenho pensado em sair deste quarto, mas também não sei se posso sair.

Isto é mais profundo do que parece: não sei se posso sair deste quarto.

Talvez não saia, nem jamais me liberte desta maldita história, enquanto não descobrir o que aconteceu com Clara.

Tenho visões fugidias dos personagens. Posso estar enganada, mas hoje vi alguém que bem podia ser a irmã Lara. Ela é mais jovem do que Maria, talvez seja a irmã caçula com físico definido, talvez seja aeromoça, talvez tenha pensado em roubar o homem moreno cujo nome nunca sei de Maria. Talvez ele fosse bom, pelo menos demonstrasse amor, nem que esse amor se resumisse a sexo escondido da irmã, nas madrugadas em que ela estava dormindo sob efeitos de remédio, talvez para esquecer as surras que tomava do homem moreno.

Talvez ela ainda tivesse descoberto algo mais terrível sobre ele, e não conseguisse mais dormir, e por causa disso foi internada no hospital, e não por depressão pós-parto, até porque Clara já era grandinha.

Será que Maria sabia o que acontecia em sua própria casa? Será que ela sabia, mas fingiu não saber? Ou ela enlouqueceu, que nem eu começo a suspeitar que enlouqueci? Nesse caso, o que aconteceu com ela?

Maria tinha o mesmo nome que o meu. Meu primeiro nome, do qual nunca gostei, mas acredito que dizendo todo dia meu nome, ele começa a fazer algum sentido para mim.

E estranhamente, penso que tudo o que escrevo, de alguma forma, está interligado nisso.

sábado, 30 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 30


19:35

Logo mais vai ser meia-noite.

A meia-noite o relógio vai tocar, e acredito que pela última vez.

Falta pouco agora.

Será que consigo terminar esta historinha antes disso?

Sim, eu também duvido. Talvez me mate antes, seria um final interessante. A história não foi concluída porque a autora se matou. Não muito original, mas como dizem que nada é original, acho que não tem tanto problema. Embora ache que se matar é uma desculpa para não continuar escrevendo. Imagina, escrever até depois de morta. E teria que escolher um médium bem bacana para eu ditar e ele concluir o que não tive coragem, ou tempo, ou perseverança para concluir. Concluí a vida, não a história.

Talvez um dia, especialmente se não decidir sair deste quarto antes da meia-noite e me matar hoje, eu conte a você por que todas essas brincadeiras em torno do suicídio.

A gente brinca para não olhar para dentro – ou talvez brincar seja realmente a única forma de olhar para dentro, e não se machucar. As histórias mudam, mas elas continuam histórias. Precisamos delas. Ao longo dos últimos trinta dias tenho escrito para você religiosamente todas as noites. Não sei se você ainda está aí, se realmente esteve algum dia. Mas eu preciso escrever. Mesmo que me mate, a história ainda não terminou.

Não, não consegui criar o nome do homem moreno, e já deveria ter pensado em um nome, qualquer um, inclusive um nome bobo. Deve haver um motivo para passar quase um mês pensando em um simples personagem, fruto – ou assim espero – da minha imaginação. Claro que há, mas ainda não descobri. Descobri Clara, a primeira. Depois veio Maria. Escrevi esses nomes algumas vezes ao longo das últimas semanas, e – você sabe – algumas vezes tive vontade de chorar. Algumas vezes chorei. As pessoas do lado de fora desta porta não vêm bisbilhotar o que faço aqui, e existe a possibilidade de que Sarah esteja monitorando tudo o que escrevo, mas prefiro pensar que isso é apenas Teoria da Conspiração.

De novo começo a me cansar.

Não sou mais uma garotinha.

Será que fui algum dia?

Eu não lembro. Você sabe. E deve lembrar melhor do que eu o que está escrito aí acima, ali atrás. Não importa. Quero seguir em frente, e a melhor maneira de seguir em frente é escrevendo. Chegamos ao fim do mês, amanhã é outro dia, já dizia Scarlett, e não sei o que vai acontecer. Será que descobrirei o nome desse maldito homem moreno?

Batem na porta.

Paro de escrever para ver quem é.

O mundo lá fora não vai parar para eu poder continuar escrevendo. Nunca. Antes fosse, mas não vai acontecer.

Estou irritada. Não deveria ter parado de escrever para abrir a porta.

Sim, existem coisas acontecendo aqui enquanto escrevo, ou tento escrever, e você me lê. Ou tenta me ler.

Como odeio falta de privacidade.

Talvez devesse jogar uma bomba neste lugar.

Mas não quero outro incêndio.

Hoje, não.

Estou começando a ficar com sono.

Serão os remédios?

Pensei mesmo que hoje poderia explodir esta porcaria.

Poderia mesmo.

Seria um final e tanto.

Suspiro.

Não vou conseguir terminar esta maldita história hoje.

Não posso morrer ainda, mesmo que o relógio toque, e ele vai tocar.

O mistério de Clara vai me deixar viva por mais um dia.

19:58

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 29


23:18

Hoje já jantei.

Sim, eu também preciso comer, nem só de escritos vive a literatura.

Aos poucos vou contando o que existe aqui, além disso que escrevo. As pessoas do outro lado da porta, aquelas que se vestem sempre muito parecidas. Aos poucos vou contando aquilo que não quero contar, aquilo que não consigo lembrar. Aquilo para onde me recuso a olhar.

Outro dia falo sobre o acidente que me trouxe para cá.

Até onde eu lembro, claro, e não lembro de muito.

Por isso – você sabe – escrevo.

Sonhei com o homem moreno, magro e alto cujo nome, por algum motivo que ainda não sei, não consigo lembrar, ou não consigo criar, pois ainda penso que ele é fruto da minha imaginação, que estou todo esse tempo apenas tentando inventar uma historinha. De onde vêm as ideias, é o que sempre perguntam, não para mim, claro, mas para um escritor de verdade. Se ele for realmente um escritor sério vai dizer a única resposta realmente honesta que ele pode dar: não sei. Assim como não sei de onde tirei Clara, Maria e Lara, embora Sarah insista nessa história de inconsciente e que tudo aquilo que crio deve ter um pezinho em uma realidade distante, algo que não consigo mais pegar, mas escrevendo e escrevendo talvez descubra alguma coisa.

Continuo sem ter a menor ideia do que vou escrever segundos antes de sentar aqui. E não apenas esqueci da noite anterior; também esqueci como vim parar aqui – aqui nesta sala eu sei, mas me refiro ao antes.

Antes do acidente.

Meus braços cansam de novo. Começo a suspeitar que vou definitivamente falar para o vento, escrever para ninguém ler, embora ainda alimente a esperança infantil de que o príncipe venha salvar a princesa presa no alto da torre.

Infantil, eu disse?

Tem alguma coisa a ver com o passado.

Clara sabe a resposta.

Preciso encontrar essa garotinha.

Preciso encontrar ela antes que o homem moreno a encontre.

Eu sonhei que ele estava passando pelo corredor. Estava com uma cara de cansado. E acima de tudo, ele estava com uma cara de mau.

Como o Bicho Papão.

Como o Lobo Mau.

Mau, porque ia fazer mal para uma criança.

De novo.

Preciso encontrar Clara.

Preciso encontrar essa garotinha, esse anjo cuja inocência escorreu pelo ralo do chuveiro.

Meu deus, água junto com sêmen.

Preciso encontrar Clara.

Antes que seja tarde.

23:33

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 28


22:46

Um dia talvez leia o que escrevi aqui nas noites anteriores.

Ainda não é hora.

Sim, acho que Sarah sabe porque nunca lembro o nome do homem moreno de cabelos lisos. Disse lembro? Quis dizer, invento. Lembrar, inventar, são todos muito parecidos. Mas acho que Sarah sabe porque não consigo criar, então, o nome do cara magro de cabelos lisos negros. O médico de reputação. Tanta que talvez – talvez, ainda não sei – encobrissem o que ele fazia entre as paredes daquela casa. Será que mais gente sabia? Será que era meio como um pacto de uma família conivente?

Sim, Maria é meu primeiro nome, e não gosto do meu primeiro nome. Acho que faz parte dessa espécie de terapia pela qual estou passando escrever meu nome, meio que para retomar minha identidade. Como sempre friso aqui, lembro muito pouco do que aconteceu ontem, e menos ainda do que aconteceu antes de eu vim parar neste lugar. Se é tudo fruto da minha imaginação? Bem, não posso responder isso. Para mim é tudo real, e se é real para mim, então é real para o mundo.

Sarah sabe mais do que ela me conta, mas ela não pode me dizer as coisas. Acho que espera que eu chegue por mim mesma às minhas conclusões. Por isso mesmo, esses psicanalistas me irritam. Se ela tem o poder de acabar com essa tortura, por que não me conta tudo de uma vez? Acha o quê, que eu não vou conseguir suportar?

Pensando bem, talvez seja isso.

Talvez tenha acontecido algo tão terrível que bloqueou minha memória.

Mas então estou condenada a não lembrar?

Escrevo para lembrar. E preciso concluir esta história sem pé nem cabeça, porque acho que no fim disso tudo está a resposta daquilo que, vá lá, talvez eu não queira enxergar.

Não sei como esses escritores conseguem escrever todos os dias. Às vezes é incrivelmente chato, vai chegando a noite e penso: ai, tenho que escrever hoje de novo.

Mas às vezes incrivelmente dói e penso, mesmo que não saiba que penso, que escolha sem saber que estou escolhendo: ai, hoje vai doer de novo.

Você falou em incêndios em armazéns e abusos, procurar em jornais, ou algo assim. Havia um armazém e tenho quase certeza que houve um incêndio, mas acho que não foi no armazém.

Neste momento me pergunto: estou falando da história que estou tentando criar ou da minha vida?

Por algum motivo que ainda não posso entender, e nem tenho certeza se existe, Clara tem as respostas. Sim, a pequena Clara tem as respostas. Mas como chego até ela? Escrevendo, suponho. É assim que chego até você, e se você ainda está aí continuaremos vivos por mais algum tempo. O fim está próximo. Mas ainda não sei o quão próximo ele está. Talvez um pouco, talvez muito. Quando ele chegar, saberemos. Até lá, talvez apareça o nome desse cara que mal consigo ver, o nome do outro garoto que havia na casa (lembra que tinha outro garoto? Irmão de Clara, talvez?).

É incrivelmente chato, dolorido, mas acima de tudo, incrivelmente difícil escrever.

Talvez porque no fundo eu não queira chegar ao fim disso, por mais que diga que sim, e cada vez que estou chegando perto, dou um jeito de pegar um desvio. Inclusive de desviar você, porque me desviando, desvio você junto. As pessoas de fora deste quarto são incrivelmente – reparou como estou usando esse advérbio incrivelmente? – iguais. Mas não quero falar desse pessoal ainda. Eles não rendem literatura. Pelo menos, por enquanto. De novo estou cansada e sem ideias. Com um pouco de fome. Sem sono, mas com fome.

E Lara? E Clara? Qual é a relação das duas, se é que elas têm, ou tinham, relação? Maldita história. Talvez deva desistir de toda essa bobageira. Suspiro. Mas se eu desistir, pensei agora, talvez fique presa aqui dentro.

O resto da vida.

Desta vida que me sobrou.

23:09

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 27


Pensei que fosse Lana, mas é Lara.

Tive que reler o que escrevi ontem para lembrar o nome da irmã.

Mas como, você pergunta, se eu disse que não lembro das coisas que escrevi na noite anterior?

Não lembro mesmo, mas estou pensando em fazer algumas anotações. Talvez um bloquinho ou uma agenda. Não lembro de nada, nisso não menti. Não que tenha mentido em outras coisas, mas suspeito que existam verdades, especialmente verdades do meu passado, o passado que foi antes de eu chegar aqui e começar a escrever esta historinha que me deram como missão criar para resgatar o que foi perdido, para as quais ainda não estou preparada.

Ou seja, continuo escrevendo para lembrar. Talvez, segundo o que imagino que Sarah pense, existam símbolos nesta história que estou criando que vêm do meu inconsciente, aliás, tudo vem do inconsciente, segundo Sigmund Sarah, e se eu conseguir juntar as pistas talvez me lembre de como vim parar aqui. Às vezes quero saber. Geralmente, não. Dói lembrar, dói escrever e dói escrever porque dói lembrar.

Você me disse que queria uma história. Talvez você tenha encomendado essa de mim, e essa é mais uma das coisas que não lembro. Não estou brincando. Realmente não lembro quase nada do que vivi antes de chegar a este quarto.

Tem coisas que sei, mas talvez ainda não seja hora de falar porque isso não tem a ver com a história, como as outras pessoas com as quais convivo e que vivem fora deste quarto, e que vivem alheias a mim enquanto fico enfurnada aqui, entocada feito alguém procurando seu cantinho na imensidão da formigueira.

Mas saiba que a maioria das pessoas de fora deste quarto usa roupas bem parecidas.

Penso no piano, mas não estou ouvindo suas teclas hoje. Penso no homem alto e moreno de cabelos lisos que está destruindo aquela família. Se você, meu interlocutor imaginário, que eu já achei que fosse meu irmão Jonas, embora eu nem lembre de ter um irmão com esse nome, sabe das coisas, responda: por que não consigo inventar um nome para esse cara? É só um nome, colocar um nome fictício em alguém fictício, não pode ser tão difícil. Veja, já temos a pequena Clara, temos Maria, temos um garoto cujo nome também não pensei ainda, e agora temos a irmã Lara.

Onde eles se cruzam? Por que afinal Maria ficou internada no hospital? Tinha pensado em depressão pós-parto, mas como disse que Clara já estava maiorzinha, não pode ser isso. Pode ter sido internada por depressão, sim, mas por que ela entrou em depressão? Talvez quando souber isso vou saber outras coisas. Imagine, ela deve ter tido algum motivo forte para entrar em depressão. Algo que aconteceu em sua casa? Algo como a ver com esse maldito moreno de cabelos lisos?

Provavelmente, mas não consigo tatear o quê. Algo que aconteceu na pracinha? Ou no armazém, que no filtro da minha mente estava sempre fechado? Talvez ele estivesse mesmo meio abandonado, mas é provável que algo aconteceu lá. Seria isso o que levou Maria a depressão? Mas se tem a ver com aquele homem, considerando que ele é médico, ele não ia se expor assim, publicamente.

A menos que não tenha sido ali que ocorreu.

Lara sabia?

Ela estava envolvida?

No quê, você me pergunta.

Quando souber isso, estaremos mais perto do fim. E vejo o relógio, que voltou a bater. Sim, estamos próximos do fim. O quão próximos? Próximos. Mas preciso que você fique aí até o fim.

Senão ambos morremos.

E ainda não está na hora de morrermos.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 26


Você me pergunta se passo os dias esperando a noite chegar para poder escrever. Se não saio daqui nunca. Como eu disse antes, por que você pergunta coisas que não posso (ou não quero) responder? E que diferença isso faz agora? Tudo o que você precisa saber é que estou aqui agora, e se você me lê, quero crer que está aí também. A minha história não interessa. Sim, escrevo para lembrar, mas neste momento não quero olhar para dentro, nem contar o que passou, o que passa. Você quer ver o espetáculo, não quer saber dos bastidores.

Ou estou errada?

De qualquer forma, eu queria contar sobre a visão que tive ontem, de madrugada. Ou sonho, ou voz, nem sei mais, mas tem uma nova personagem nesta história. Nem tão nova, ela já estava aqui. Apenas não tinha sido batizada ainda. Enquanto escrevo meu corpo volta a pesar, não dormi direito semana passada. Digo, noite passada. Droga, já estou variando por causa do sono. Será que tomei alguma medicação? Uma medicação errada, uma medicação a mais.

Quer mesmo que eu continue com isto?

Posso parar por aqui se você já estiver com enfado de me ler. Talvez esteja.

Mas se continuar por aí, sou obrigada a escrever.

Vamos lá. Começa assim:

Lara.

O nome dela é Lara.

Nunca falei esse nome porque não tinha inventado. Ou lembrado, se você acha que esta história é mais do que realmente digo. Talvez mais do que eu realmente saiba.

Lara era a irmã. A outra mulher.

Quando escrevi “a outra mulher”, não quis dizer que ela era “a outra”. Não necessariamente. Disso ainda não sei. Sei que ela era a outra, porque a primeira mulher era a Maria. Lara era irmã de Maria? Foi Lara quem cuidou das crianças quando Maria ficou internada no hospital? Eu disse “crianças”. Afinal, Clara tinha ou não tinha um irmão? E se tinha, era um só? E se havia outro, era do mesmo casamento, ou o pai tinha uma amante? Hmm, isso faz sentido. Talvez tivesse várias e ninguém falasse nada porque ele era médico de reputação... – que se dane, era médico. Não precisava ser mais nada. Se não comentavam sobre o que acontecia dentro de sua casa, amantes seriam peixe pequeno.

Lara. Ainda não sei muito dela. Vou ter que escrever para descobrir. Sarah disse que preciso continuar escrevendo, que tenho que escrever todo dia, porque aí está minha cura. Meu corpo está incrivelmente cansado. Não dormi direito noite passada – já disse isso? Meus olhos também começam a se embriagar. E eu não bebo. Já disse que não bebo? Já disse que não gosto do meu primeiro nome? Acho que dizer que meu nome é Maria é uma forma de assumir minha identidade. Afinal, esse é meu primeiro nome. Nunca gostei, mas acho que tenho que desconstruir isso. Desconstruir é outro termo que os psicanalistas usam. Minhas pálpebras pesam. O sono aumenta. Talvez deva parar de escrever agora. E dormir. Você acha que não durmo, não é? Mas eu durmo, sim. E me alimento. E tomo banho. E às vezes, mas acho que isso você já sabe, choro escondida no canto do quarto.

Acredite, mas não dê muita bola para isso neste momento: tem uma porção de coisas sobre mim que você ignora.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 25


Maria, mãe de Clara.

Doce Clara.

Maria ou Clara?

Maria e Clara.

Onde foram parar? Eu estou aqui, e tento reencontrar as duas. O piano volta em minha mente. Maria, a mãe, tocava piano. Sempre lindo, sempre triste. Sempre, não. No começo não era. Seu piano foi ficando assim, porque ela tocava o que sentia. Tocava o que sangrava. Tocava o que faltava. Solava sua dor. E mesmo que não soubesse, era a dor da filha, que a ouvia com a porta fechada, tocando no piano da sala. No passado, em um passado distante, o homem alto de cabelos negros a escutava tocar. Será que ele não percebeu que as melodias mudaram? Ou percebeu e não se importou?

E a irmã, que participação tinha nisso?

Talvez Maria, a mãe, tocasse antes da irmã se mudar para a casa deles.

Depois acabou.

Ou melhor, jamais acabou.

Ela está viva dentro de mim enquanto escrevo.

Eu, Maria.

Mas hoje o piano não me faz chorar. Amanhã, não sei.

Hoje apenas escrevo porque você prometeu voltar, e eu acreditei.

Você é mesmo meu parente ou é apenas outro alguém-ninguém, meu interlocutor imaginário que criei para não enlouquecer?

Não, eu não posso estar louca. Não. Não posso.

Então, suspiro. Às vezes estas paredes que me rodeiam parecem querer encolher e o quarto-cela fica mais apertado. Será o calor? Será o piano, que não sei mais se existe ou foi outro fruto da minha imaginação?

Ó, Maria, Ó, Clara. Quem mais temos aí? Algum animal de estimação? E Clara não tinha amigas? Com quem ela brincava? Em minha imaginação, sempre vejo ela sozinha. Uma criança brincando sozinha. Ou ela perdeu a capacidade de brincar? Isso faz sentido.

Acabo de me lembrar da história do gás. Você deve ter lido por aí. Existem sim crianças suicidas. O que levaria alguém a querer dar fim a tudo? Talvez esse fim já tivesse chegado, como para quem se mata já gente grande. E então essa história é sobre Maria, você pergunta. Talvez seja sobre todos eles. Talvez seja sobre a família inteira, e sobre mais alguém que ainda não apareceu. Eu continuo sem ter a menor ideia do que vou escrever segundos antes de sentar aqui, e assim tem sido noite após noite. Mas alguns elementos parecem ser recorrentes nessa história. Não, não pense que sou repetitiva. Apenas pense que se essas imagens voltam sempre na mesma história existe algo aí que ainda não consegui captar.

Nem na minha vida, nem na deles.

Por isso escrevo. Dói escrever, dói a verdade, seja ela qual for. A fantasia é tão melhor, tão mais perfeita. Por que não posso viver o resto da vida dentro deste quarto apenas escrevendo? Talvez deva esquecer esta história estúpida que não vai dar em nada. Talvez eu parasse de chorar entre uma sessão de escrita e outra, ainda escondidinha e não conto qual o meu lugar preferido para chorar – mas às vezes choro olhando para a tela, choro e escrevo e você acha que não, que apenas estou escrevendo e não escrevendo e chorando. Ou você consegue me ver apenas me lendo?

Diga-me, você consegue me ver apenas me lendo?

Você consegue ver Maria, a mãe, e Clara, a filha, apenas lendo o que estou tentando escrever?

Consegue ver o homem-demônio que está arruinando esta casa? Você tem raiva dele? Diga-me, o que você sente quando lhe conto tudo isso? Ou você é indiferente?

Todos foram, por que você seria diferente?

Mas ainda penso naquela garotinha, e ouvir esse piano que sua mãe tocava, e olhar para a foto daquele anjinho sorrindo para mim, me faz suspirar mais uma vez.

domingo, 24 de novembro de 2013

Nanowrimo - Dia 24


21:34

Claro que pensei em não vir hoje.

Não vir não é bem a palavra, porque estou enclausurada aqui.

Mas pensei em não escrever, nem hoje nem nunca mais.

Para que insistir nesta história que ninguém vai ler, que nem quero que leiam e que me dói, palavra por palavra?

É a dor que cura, disse Sarah. Então resolvi escrever. Só mais um pouco, só mais um dia.

Ontem falei que tinha alguém que tocava piano naquela casa. Não tenho ouvido piano, e não sei se isso é bom ou ruim. Talvez nem tenha sido ontem que falei de piano, como você sabe ou acho que sabe, não me lembro de muita coisa antes de começar a escrever. Por isso escrevo. A história deve acontecer, e ainda tenho uma certa esperança de que possamos mudar o fim da história.

Você e eu.

As palavras me faltam, a permanência neste quarto tem me imposto limites, claro. O homem magro de cabelos lisos e negros não está lá enquanto escrevo. Por que nunca consigo dar um nome para esse homem, ainda mais que é apenas um personagem em uma história, e eu deveria ser a todo-poderosa contadora que escolhe quem vive ou quem morre nesta história?

Infelizmente não é assim.

Maria está cozinhando. Ela está cabisbaixa. Aliás, ela tem passado dias assim. Clara já viu sua mãe por longos períodos deitada na cama, sem sair de lá por nada. Clara pensa que a culpa é dela. Ela pensa que decepcionou a mãe. Maria gira o botão e sai o gás. Naqueles breves dois segundos, enquanto Maria risca o fósforo e acende o fogo, Clara a observa, atenta. E naquele momento, aprende como ligar o gás. E aprende que se riscar o fósforo, um fogo se cria.

Maria, por que foi ensinar Clara a ligar o gás?

É claro que Maria não podia imaginar o que aconteceria tempos depois, até porque – até onde se saiba – ela sequer sabia o que acontecia debaixo de seu nariz, dentro de sua própria casa.

E quando, tempos depois, Clara veio falar pra ela sobre o que o pai fazia, o pai médico que não podia arranhar sua reputação, Maria a chamou de mentirosa.

Ó, Maria, por que não acreditou em Clara quando podia? Quando ainda havia tempo?

Mas talvez não houvesse mais tempo.

O fim que corro escrevendo para tentar mudar, o final dessa história, a cada noite que busco palavras para registrar o que já passou, ou o que está passando, parece cada vez mais inevitável. Não existe uma forma de mudarmos o rumo das coisas? Talvez eu não esteja simplesmente contando uma história que acontece apenas em minha cabeça, mas uma história que – Deus queira que não – tem suas raízes na realidade, só que está acontecendo em algum nível da realidade, e já que estou intuindo como ela vai terminar, talvez eu possa fazer alguma coisa para mudar o destino. Ou estou escrevendo sobre algo que já aconteceu, e minha débil tentativa é apenas, já que não se pode mudar o passado, dar um novo sentido para o que passou.

Mas que sentido, em nome de Deus, esse Deus que deveria estar lá e não estava, pode ter tudo aquilo?

Uma vez mais, tenho vontade de chorar. E as teclas do piano voltam em minha memória. Não posso dizer que as escuto, mas em minha memória alguém toca piano.

Eu disse memória, de novo? Eu quis dizer que estou criando, e sei lá de onde, um som que vem se aproximando, em cor e nitidez, mas que some, e sei que alguém naquela casa tocava piano.

Era Maria quem tocava.

Maria, igual meu nome.

Maria Que Tocava Piano.

Maria Que Estava Viva Quando Tocava.

Por que ela parou de tocar?

Por que não há mais música aqui?

Tenho vontade de chorar, mas estou muito cansada para isso agora.

Quem sabe amanhã?

22:00

Nanowrimo – Dia 23


Um pouco atrasada, eu sei.

Achou que eu não viria?

Pessoas de pouca fé.

O caso é que agora é tarde da noite. Portanto não estou ouvindo o piano que tenho ouvido e até queria ouvir agora. Mas tem outra coisa: descobri  hoje que tinha alguém naquela casa que tocava piano. O que aconteceu depois ainda não sei, mas nesta história alguém tocava piano.

Você disse que espera ouvir o falar do homem dos meus pesadelos.

Quero dizer, dos pesadelos de Clara. Ó, Clara.

Hoje me ocorreu que, depois de ele ter voltado a beber, voltou com tudo e passou a se embebedar em bares próximos de casa e na própria casa. Em um desses dias, Clara chegou em casa e sentiu um odor forte de álcool. Ela ainda não entendia bem o que significava aquele cheiro, o que significava o poder do álcool, mas esse, junto com o café, foi o cheiro mais forte de sua infância. Não é um tanto bizarro? Você pergunta para uma pessoa o que ela lembra da infância e ela responde: cheiro de trago. Trago em geral, mas me vem a cabeça um Barreiro, parece que o Velho andava frequentando a casa naqueles dias.

Clara entrou em casa e sentiu aquele cheiro forte, mas nada estranhou. Depois de algum tempo, aquele era o cheiro do lar. Ela entrou, e era como se as paredes cheirassem a álcool, e como ela sentia cheiro do álcool que usavam no mimeógrafo da escola, até pareceu convidativo. O cheiro do álcool fazia ela se sentir em casa. Mas o homem alto moreno de cabelos negros, cujo nome não consigo lembrar – digo, inventar, porque tudo isso é, ou penso que é, uma história que estou inventando e vou permanecer confinada neste quarto, ou nesta cela, dependendo do ponto de vista, até terminar – tinha saído. O álcool que saía por seus poros deixava um rastro no ar, tanto que mesmo quando ele não estava em casa, o cheiro – seu espírito, eu diria – permanecia no ambiente. Sei que ele voltou para casa, provavelmente do bilhar, e começou a discutir com Maria.

Não eu.

A mãe.

Sei lá porque eles discutiam e não fazia diferença, o que importava para ele era discutir. Ele começou a pegar em seu corpo, começou a puxar ela para si. Ela estava de avental, sobre um vestido, que ele levantou, colocou a mão entre suas pernas, deslizou por suas coxas. Ela disse que não queria. Ele insistiu. Ela insistiu que não. Clara estava no corredor assistindo tudo. O homem alto e moreno de cabelos lisos deu com as costas da mão no rosto de Maria, tão forte que ela caiu no chão. Não, antes ele chamou ela de vagabunda. Vem cá, putinha.

Depois ele deu o tapa.

Ela ficou alguns segundos caída no chão, até que ele agarrou ela e ajudou ela a se levantar. Não vamos brigar, ele disse. Desculpe, eu me descontrolei, você sabe que eu te amo.

Ela disse que tudo bem.

Vamos para o quarto, ele disse. E ela foi andando na frente, tal qual um condenado e seus últimos passos no corredor da morte.

Pouco antes de fechar a porta, o diabo voltou a falar.

A falar, não. A sorrir.

Ele olhou para o corredor e viu que Clara tinha visto tudo. Então ele olhou para ela.

Dos pés a cabeça.

De novo, dos pés a cabeça.

E sorriu.

Ele fechou a porta do quarto, ainda olhando para Clara, olhar de assassino nos olhos de criança. 

Olhar de namorado nos olhos de criança.

Aquela não tinha sido a primeira vez que ele bateu em Maria.

Nem foi a última.

Mas naquele momento Clara decidiu que nunca ia beber.