quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Depois do Pablo Held Trio



Fui ontem ver os alemães do Pablo Held Trio (tem um show extra hoje, se correr ainda dá tempo) e no fim comprei seu belo e introspectivo Music, das mãos do próprio Pablo. Bem bacana o show. Antes de começar, ele avisa que nunca sabem que músicas vão tocar quando sobem no palco, apenas deixam a coisa fluir, e parece que estão lendo a mente um do outro, todos bem concentrados. Depois do fim do show, fomos lá bater um papinho.

Perguntei a ele se o trio apenas improvisava ou se a uma hora de música ininterrupta eram as músicas misturadas, e ele disse que um pouco dos dois. Ele começou na bateria aos 5 e no piano aos 10. Aos 25, já é uma das sensações do jazz europeu. Perguntei se ele nunca tinha pensado em desistir, ele disse que sim, durante a adolescência, até que seu pai perguntou “por que acha que estou apoiando e investindo em você, com todas essas aulas?” e então ele decidiu se dedicar a valer e ser profissional. Fiz a mesma pergunta ao batera Jonas Burgwinkel, de 30 anos, e ele disse que também pensou em desistir, quando as coisas pareciam não ir para frente. Perguntei se as pessoas incentivavam ele, que respondeu um irônico “mais ou menos”, e que só quando começou a ganhar algum dinheiro com a música começaram a respeitá-lo mais (afinal, ser artista, músico, escritor ou qualquer desses bichos-grilo, não é fácil. Nem aqui nem na Alemanha). E disse que podia ficar sentado no sofá, mas se em vez disso estivesse praticando, sentia que estava fazendo alguma coisa 
Só essas duas falas já valeram a noite.
E foi pensando neles que hoje, que não vamos ter reunião de equipe e posso chegar mais tarde, enquanto me preparo para encarar o (geralmente) dia mais corrido da Red Cross e, antes disso, me aventurar na chuva que não para de cair na cidade-sorriso, esquento o chimas e vamos a escrita. Faz uma semana que o escritório da Distant Thunders Administration está maravilhosamente perfumado com o Haiti Coffee, que mandei passar semana passada e ainda nem estreei – quem sabe hoje?
Ontem soube que tem outro concurso para publicar originais inéditos, acho que semana que vem sai a primeira leva da Funarte, e Mr. Vizinczey acaba de me dizer que, desde que ele tem um prazo para escrever, ele tem que escrever.
Então, ao trabalho.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Tema de Casa


Sem fôlego, César corre para dentro de casa. Atropelando todos os objetos em seu caminho e quase despencando pela escada, ele entra em seu quarto. Vai em direção de Mike, sentado na beirada da cama e o abraça. As lágrimas descem quentes pelo rosto de César, tatuando a alma. “Desculpe, desculpe”, apertou forte Mike contra o peito. Choro desesperado, de tremer o corpo todo. De faltar voz, de enlouquecer alguém. Choro — até quase desmaiar. “Desculpe”, implorou mais de mil vezes.

Ao chegar na escola, César avista Joana no corredor. Eles se cumprimentam, ela sorri para ele. Joana olha carinhosa para César e ele lembra do filme que nunca viu. Olhos de serpente. Ele sorri de volta. César a pega pela mão de forma suave, convidando. Joana não entende e recusa. “Vem, eu quero te mostrar uma coisa”, insiste ele. Educado, como sempre foi, como sempre exigiram que ele fosse. “Quero que tu veja uma coisa”, diz ele. “Que coisa?”, pergunta aos sorrisos. “Vem”, insiste César, conduzindo Joana pelo corredor até a porta do banheiro masculino, adentrando. Serena, Joana pergunta a César o que ele queria que ela visse. “Olha para a parede”, diz ele. Joana fica de costas para César, que lhe dá uma forte joelhada no pulmão direito, produzindo um ruído seco. A garota quase desaba sobre o chão. César a agarra pela camiseta, esmurrando seu rosto até ela se curvar, cuspindo sangue. Ele então agarra a cabeça da colega fortemente pelos cabelos e bate com ela repetidas vezes contra o concreto, quebrando o nariz de Joana, abrindo seu supercílio e um talho em seus carnudos lábios. César vira o corpo da garota, jogando-o violentamente para dentro do boxe. O barulho das costas dela tentando vencer a parede demonstram que algo foi quebrado – um alicerce ou uma costela. Com o impacto, o sangue do rosto dela espirra na parede, decorando o branco opaco de vermelho. César estrangula Joana sobre o vaso sanitário, olhando em seus olhos. Olhos de vidro nos olhos de serpente. Ele emite um grunhido, sem alterar sua expressão facial. E solta o corpo. Joana está morta, espalhada sobre as fezes de alguém que não quis dar a descarga. César sai caminhando do banheiro, atravessa o pátio e dirige-se até o portão da escola. Só então começa a correr.

Com a porta do quarto chaveada às suas costas, ele olha direto para a prateleira. Ao avistar o pequeno Mike, César avança. Passos rápidos de gigante dentro da criança que já não era mais. Passa desapercebido da cabeça de tigrinho branco de pelúcia sem corpo, jogada aos pés da cama, e bate violentamente no rosto de Mike, virando e agarrando a cabeça, batendo incessantemente com ela contra o armário. O corpo cai no chão. César aperta o pescoço de Mike com toda a força.

César entra em casa sem falar com ninguém. Durante o almoço, olha fixo para o prato, o qual esvazia muito rapidamente, se levantando da mesa em seguida. A mãe pede para ele ajudar a tirar os pratos, pois ela não pode fazer tudo sozinha. César pergunta se ela pensa que ele é um inútil e começa a xingá-la. Ela começa a chorar. Ele se tranca no quarto.

Na hora do intervalo, Joana está perto do quadro-negro perguntando para César, sentado na primeira classe, em que circo ele trabalhava, referindo-se à roupa listrada que o garoto vestia. Metade da turma gargalha. “Mas eu gosto”, ele diz, quase se desculpando. Mais gargalhadas. Ele fica sério. As piadas proliferam ao redor de seus ouvidos. Ele começa a rir. Sem graça.

Ele ergue a cabeça em direção ao canto do quarto, contemplando a sua vítima de todas as semanas, e completa em sua agenda: “hoje eu dei a centésima surra em Mike.”

César está cabisbaixo. “Eu queria poder me enterrar nesse concreto”, sussurra ele para o melhor amigo Francis, que ri cínico e diz a ele com firmeza que foi muito bem feito a namorada tê-lo traído e abandonado, pois ele tinha sido avisado. César vira o rosto em direção a Francis, tremendo as mãos. Dentes trincados. Respira fundo e conta uma, duas, dez vezes. “E não adianta me olhar com essa cara”, avisa Francis. César volta a encarar o chão.

No dia de seu aniversário, César encontra seu pai, quase um ano após a última vez em que se viram. Ganha um orangotango de pelúcia. O pai diz que sente muito não poderem se falar mais seguidamente e que vai fazer de tudo para reverter essa situação. Uma mulher o chama, ele se despede apressado. César nada diz e também se retira, após observar seu pai ir embora com a namorada. Põe-se a caminhar pela calçada, abraçando vez ou outra seu presente. Batiza-o de Mike.

Às vésperas de completar dois meses de terapia, o psicólogo finalmente ouve a voz de César. Ele conta uma história confusa, fala mal de seus amigos. O relógio marca cinco horas. César se despede do psicólogo com um forte aperto de mão e dirige-se a até o ônibus que o levaria para casa. Ao chegar, sorridente e falando alto, encontra sua mãe na cozinha e diz que mal pode esperar até a próxima semana, naquele mesmo dia. A mãe olha terna para o menino e acaricia seu pequeno rosto. Diz que seu pai ganhou a liminar que reduz a pensão e que seu tratamento com o psicólogo seria interrompido.

Na escola, cada vez mais afastado dos amigos. Em casa, cada vez mais quieto, sobretudo nas manhãs seguintes ao acordar de uma madrugada de discussões familiares. Reuniões no colégio, bilhetes frequentes denunciando sua constante falta de atenção nas aulas. Seu pai acusa César de estar se drogando. Reprovação no final do ano. Seus pais se separam.

Com raiva, com muita raiva, ele percorre as paredes de seu quarto com os olhos. Acaba parando no tigrinho branco em frente aos livros. Caminha até a outra extremidade do quarto e começa a espancar o boneco.

César tem sua atenção desviada ao ouvir um dos meninos do outro lado do campinho de futebol gritar seu nome e não percebe o vizinho que segura seu calção e o abaixa até os joelhos, trazendo consigo as cuecas.  Todas as meninas sentadas no banco apontam para ele.

É Natal. Na casa da Tia Elaine, os adultos conversam perto da lareira. Dois casais com taça de vinho se encontram esparramados sobre o sofá da sala. Às duas horas da madrugada, quatro horas após o horário normal do toque de recolher, César é a única criança acordada. Caminha pela casa, ziguezagueando os parentes a sua volta, trazendo consigo o tigrinho branco de pelúcia recém ganho, até que puxa seu pai pela mão, interrompendo a conversa com suas tias, apontando para uma senhora no canto da sala, dizendo que ela era uma velha muito feia. Constrangido e irritado, seu pai o puxa pelo braço, dizendo que os meninos educados têm que ser discretos.