terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Mais de Duas Horas de Literatura

Em meio às correrias de fim de ano, reserve pelo menos duas horas para discutir literatura.

A primeira para saber: escrever é apenas narrar?

E a segunda para entender: como as intranquilidades do mercado editorial interferem no processo de criação?

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Palavra por Palavra

No fim de Oficina de Escritores há uma lista de leitura sobre livros falando sobre o ofício de escrever. Entre eles, um chamado Bird by Bird, que fala sobre as preocupações em ter confiança no difícil processo de produção de um texto, e parecido com “um programa de doze passos para a recuperação da auto-estima orientado por uma espécie de irmã mais velha que se levanta no meio da reunião e anuncia com voz forte ‘meu nome é Anne Lamott e sou uma escritora assustada.’ O livro revela como avançar – e continuar avançando – diante da dúvida, do autodesprezo, do pânico, da fúria competitiva, do desejo de fugir, da incapacidade de trabalhar, da convicção de simplesmente não ser capaz de escrever.” Li isso e pensei que não tinha como um livro desses ser ruim.

Pois que depois de terminar os dois cursos de formação neste mês (te mete!), e sabendo que o livro fora traduzido e editado por aqui, comecei a ler Palavra por Palavra, um saboroso passeio pelas angústias da criação. Tem algumas pérolas, tais como precisarmos escrever três páginas ruins de um esboço ruim para na quarta página o texto realmente começar a fluir. Anne diz que não existe fórmula mágica, a gente tem que sentar na cadeira (onde o processo realmente começa) e disciplinar o inconsciente para produzir em determinados horários, seja às seis da manhã ou às dez da noite. Ela assegura que a grande recompensa é a escrita em si e não a publicação. Mesmo quando seus primeiros livros ganharam edição a insegurança não diminuiu, e só no quarto livro começou a ganhar algum dinheiro – antes disso, era apenas uma escritora morta de fome. Escrever foi tudo o que restou à menina cheia de complexos e excluída desde sempre, que se considerava uma inútil em tudo, mas que herdou a paixão e a disciplina do pai, também escritor e leitor diuturno. Tornar-se escritora foi sua única saída, e sua redenção. Ela também fica irritada quando o telefone toca e está trabalhando (que bom que não sou só eu), mesmo que o trabalho no momento seja unicamente observar a tela em branco.

E estou recém no começo do livro.

Enquanto isso, temos a vida seguindo em frente e aquele gostinho de estar fazendo alguma coisa por ela em uma segunda-feira de manhã. Hoje com Lester e Oscar, que me fazem sonhar que este calor horrendo já se foi e hoje está um lindo dia de outono.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Namore uma garota que lê

Começando dezembro, leio o bonito texto sobre namorar garotas que leem, enviado pela minha Namorada que Lê.

Merci, Mademoiselle!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Recado à Gramática

Desenterrei uns disquetes (disquetes, veja você) e achei alguns textos meus de mil novecentos e antigamente. O texto abaixo é dessa safra, escrito às duas da madrugada de 24 de junho de 1999, nos meus anos de Famecos, para a cadeira do Gilberto Scarton, o melhor professor que tive na faculdade, e a quem dedico este texto:

RECADO À GRAMÁTICA

A língua portuguesa – ou brasileira – é meio complicada. Ela possui um sem número de regras gramaticais, concordâncias, acentos e demais detalhes que nos fazem questionar o verdadeiro valor (se é que existe) de tais regras. O mais importante de uma língua é comunicar, certo? Se conseguimos isso, por que tanta briga em cima da gramática, gramática, gramática? Preste muita atenção: COMUNICAÇÃO, eça é a palavra. Os profeçores teóricos mais concervadores parecem não entender eçe pressuposto i insistem em maliar os alunos, coitados. São capazes de matar um só porque ele escreve, por descuido, a palavra caza de forma errada. Mais não são capazes de esplicar porque diabos a palavra caza si iscreve com “S”. O correto seria mesmo iscrever com “Z”, que já tem o som característico, oras! Outra coiza que ninguém esplica é porque se escreve de um geito e se lê de outro. Ou se fala como se escreve ou si iscrevi comu si fala.

O importante na comunicassão é que a mensagem seja paçada de forma clara i obijetiva. Também devem ser levados em consideração toda uma séri de “dialetos” que ezistem pelo Brasil afora. Todos nós falamos diferenti uns dos outros e nem porisso deichamos de falar a mesma língüa. É provável que muitos ditos intelectuais tenham se contentado a reproduzir quilos e quilos de regras obsoletas que decoram de livros igüalmente obsoletos ao invéz de tentarem acompanhar a evolussão da lingüagem – ou mesmo promover tau evolussão. Há ainda profeçores acéfalos que inssistem em afirmar que determinada palavra se não consta no dicionário é purque não eziste. Qüanta bobajem! O que são “neologismos”, então? Como podem haver palavras novas se TODAS as palavras já istão catalogadas num livrinho? Meio contraditória essa noça língüa, não? Só não sei o qui é pior: se as suas naturais contradissões ou os vários e vários indivíduos considerados intelijentes (não sei por quem) que paçam a vida a complicar ainda mais algo que in essência já é complicado.

Para finalizar, deixo a pergunta no ar: se você conseguiu entender tudo o que eu quis comunicar no texto acima, para que diabos, afinal, serve essa droga de gramática?

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Chimas & Escritos Early In The Morning

Vamos falar na decisão de ser escritor. Como se deu? Difícil precisar. Naturalmente, não foi de uma hora para outra, mas o certo é que nunca hesitei entre aderir às letras e empenhar-me em qualquer outra carreira. Nenhuma das outras formas de justificar a nossa passagem na Terra me animava. Não me parecia, por exemplo, que prefeito ou gerente de uma firma tivesse muito sentido. Fui pesando as forças, sondando-me, até que – com essa dose de ilusão sem a qual nada empreendemos – me alistei na literatura, fiz os votos, assinei um pacto, jurei fidelidade, convertendo num projeto sem volta o que antes fora intermitente.

Osman Lins, entrevista a Edla Van Steen. In: Viver & Escrever – vol. 2. Ed. Lpm.


Enquanto procurava os links na internet para montar este post, descobri que o clássico Bird by Bird foi traduzido, então provavelmente vá morrer com mais uma graninha amanhã, último dia de Feira. Isso depois de levantar cedo em pleno feriado, tomar um chimas invertido e escrever. Enfim, estou conseguindo manter a disciplina e, para celebrar, deixo você hoje com o grande Chet Baker, minha trilha de novembro.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Bruce e os Independentes

“Nunca aceite um não como resposta e nunca pense que algo é impossível. Certo, na verdade nem todos podem conseguir isso, mas o importante é nunca arriscar sua integridade. Um conselho: divirta-se sempre. Faça o que deseja por paixão verdadeira e não apenas pelo dinheiro.”

Bruce Dickinson, vocalista da Melhor Banda do Mundo, em mensagem aos novos músicos que sonham com a fama e fortuna.

Acho que vale para os novos-escritores-ainda-não-publicados também, e hoje passando pela Feira e falando com o Tales até voltei a pensar em fazer o um pouco eterno livro em edição independente e lançar no ano que vem, até porque já estou escrevendo a segunda versão do segundo romance, então é como se já estivesse escrevendo o terceiro livro e o primeiro ainda não foi publicado. Quem sabe rolamos os dados e pagamos para ver até onde meu livrinho vai?

De qualquer forma, semana passada madruguei quase todos os dias (a exceção do trabalho na sexta e da aula no sábado) para escrever. Uma das melhores heranças de minha temporada em Taquari foi essa: levantar cedo, tomar chimas enquanto o sol nasce e trabalhar. Ainda temos que arrumar a maledita impressora para ler o texto no papel, mas o que importa é que a coisa está andando. Pelo menos semana passada andou. Da Feira tivemos importantes aquisições literárias, que vão desde Mario Benedetti e Juan Carlos Onetti até John Fante e Dashiell Hammett. Fora os módulos do Senad que tenho que estudar, e hoje ainda temos teleconferência às 14 e 30, e formatura no Mãe de Deus no começo do ano que vem.

Enquanto isso, milhares de carinhas estão correndo para escrever um romance até o fim do mês.

Então, pra eles e pra nós: get busy.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Cannon e os Novos Começos

“O dia para mudar é hoje”, não é mesmo? Faz umas duas horas que escrevi a primeira página da nova versão da minha novela, e se eu mantiver a disciplina e a perseverança bons ares literários me aguardam. Descobri uma pérola do mestre Cannonball, estou retomando os estudos noturnos do Senad, e logo mais vou reservar um tempinho para ler o último conto do Marcelo.

Lá fora chove.

E hoje estamos bem.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

So What

Pois que 19 anos depois da primeira vez em que toquei ao vivo, hoje os tais Motivos de Força Maior me trouxeram inesperadamente de volta à Cidade-sorriso, uma semana antes que o esperado. Então revejo Rocky dizendo que o que importa não é o quanto se apanha, mas o quanto você consegue apanhar e seguir em frente, feito uma oração, e ouço Miles, o único capaz de traduzir o sentimento deste começo de semana, e de novos começos mais uma vez: So What, e a luta continua.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Rumos e Benedetti

Mas existe verdadeiramente outro rumo? Na verdade, só existe a direção que tomamos. O que poderia ter sido já não conta.

Quem de nós, Mario Benedetti.

Em tempo: chegou ontem o kit do Senad, com livro, guia do estudante e videoaula. Bom para estudar nos dias em que não sobra tempo para a web lá na clínica.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

De volta ao caderno

Enquanto ouço Mobley, na tarde de terça de volta à cidade-sorriso na minha semana de folga, e vejo minimizadas no monitor as aulas que comecei a estudar para a prova de sábado, em uma rara hora que consigo sentar aqui para escrever (resistir é preciso), entre a primeira e a segunda xícara de café, antevejo as páginas que consegui escrever de volta ao caderno nos minutos finais pós jornada de trabalho em meu quarto na City of Taquari, a espera de serem jogadas em meu computer, trabalhar e retrabalhar o texto, e penso nos comentários da Mademosoille de ontem, e vejo como ando escrevendo períodos longos no texto, estamos na oitava linha do word e ainda não coloquei sequer um ponto no texto, mas e daí, fluxos de consciência são um barato, ainda mais quando a gente vai solando pelas palavras, e sorrio agradecido à Providence pelo que minha vida se tornou, em plena terça de tarde, os indicadores do Blogger mostram que tenho leitores nos Estados Unidos, Russia, Alemanha e na França, veja você, imagina comentários em cirílico aqui, bem que podia, mas o mais importante é continuar escrevendo, lendo, estudando & acreditando, enquando a primavera se faz de outono, e que bom que é assim, pausa para respirar enquanto Kelly sola o piano e termino a segunda xícara de café, desta vez com chantilly e swingo junto com Blakey, life’s good, e nosso amor está aqui para ficar.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

From Taquari

Depois de levar meu caderno na mochila pela terceira semana e nada de escrever, finalmente consegui deslanchar. Há três noites que ando rabiscando a nova versão da história de Carol, já que na cidade-sorriso as tarefas (ou a má administração do tempo) me consumiram, o ar do campo em Taquari, depois que cessa o serviço, o que acontece invariavelmente tarde da noite, tem rendido literatura. Até estou experimentando recontar essa história na Primeira Pessoa, já que segundo comentários os pontos altos da narrativa foram os trechos usando o Eu. Não apenas por isso, claro, mas sigo experimentando, desbravando o texto, testando possibilidades.

Que bom, a coisa não morreu.

sábado, 17 de setembro de 2011

Bovec

Quando tudo o mais estiver perdido, ainda restará o futuro.

A frase de Bovec traduz um pouco o que acredito sobre novos começos e esperança, enquanto escrevo ao som de um dos discos mais demolidores de todos os tempos, e penso na lista de afazeres que fiz no ônibus de volta a Cidade-sorriso, inclusive escrever, já que durante minha all day hard working week não sobra tempo para esses luxos da arte.

Resistir é preciso. Quem sabe esta semana não começo enfim a contar a nova versão da história de Carol e Naomi?

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Isis & O Grito

Quase no fim do mês das vocações, a internet foi pro espaço de novo, uma ex-colega minha morreu esta semana, minha progenitora foi para o Leste Europeu hoje e amanhã teremos, quem diria, entrevista para emprego em outra cidade. Enquanto isso, um pouco de ficção para matar as saudades, outro conto da Isis:


Knoc, knoc, bateram na porta de Isis. Detestava o som de porta batendo, knoc knoc, não ia atender. Sempre nas horas erradas, nunca quando mais se sentia sozinha e queria companhia. Podia ser alguma coisa importante, não, devia ser o vizinho altista querendo vender seus quadros pintados com a boca, ou então mais uma conta, knoc knoc. Isis levantou da cadeira, passo rente ao chimarrão que pretendia tomar e entrar em contato com o Deus Vazio, e caminhou até a porta da sala. Suspirou, tentando não parecer irritada por emergir do fluxo constante de pensamentos nos quais estava mergulhada. Esboçou sua cara de paisagem e abriu a porta.

— Oi.

Era a Bebel Puft.

— Oi, Isabel, disse Isis, com ares de surpresa.

— Posso entrar?

Isis deu espaço para que a mulher grande que no dia anterior a tratara tão mal pudesse entrar. Perguntou se ela queria sentar, Isabel disse que não. Disse que ia ser direta. Isis colocou a mão por sobre o estômago mais uma vez. Aquela frase nunca era seguida de coisa boa, mas Isis não tinha mais como fugir. Estava em sua própria casa, e não podia sair correndo pela porta da frente. Ou podia? Seria uma boa ideia, talvez a impedisse de ouvir o que ela temia ouvir, mesmo que não tivesse a menor ideia de por que Isabel a estava visitando, ela que jamais vinha em sua casa.

— Acho que eu não fui legal com você ontem.

Isis disse que tudo bem, às vezes a gente tem uns dias meio estranhos mesmo.

— Tem uma coisa que eu queria dizer.

Isis trancou a respiração. Aquela frase também não era prenúncio de boas novas.

Geralmente não era.

— Lembra do Marcos?

Os polos dentro de Isis se deslocaram.

— Qual Marcos ? perguntou ela, com naturalidade.

— O seu ex.

Isis fez que sim, ainda com naturalidade.

— Sim. Foi o último homem com quem fiquei, antes de me tornar – como você me chamou ontem? – sapata.

— É verdade que vocês eram noivos, estavam até com o casamento marcado?

Isis disse que sim, mas aquilo fazia muito tempo.

— Vocês acabaram por que ele ficou com a Marylin, não foi?

Isis sorriu, disse que nem lembrava direito. Perguntou se Marylin era uma loirinha. Isabel disse que sim, a rainha do colégio. Isis, com desinteresse, disse que tinha se lembrado, é, foi por causa disso mesmo.

— Tem uma coisa que você precisa saber.

— A Marylin é lésbica?

Isabel fez que não. Estava com expressão grave. Ela caminhou de um lado ao outro da sala, percorrendo o olhar pelo sofá branco, talvez na tentativa de encontrar as palavras para dizer o que viera ali para dizer.

— O que foi? A Marylin morreu?

Isabel fez que não, ainda hesitando. Disse que tinham feito uma aposta. Ela e as gurias, as gurias da fotografia que Isis tinha ido procurar em sua casa, no dia anterior. Isis perguntou que aposta.

— Que Marylin não seria capaz de beijar o Marcos, um beijo de cinema, na hora em que ele estivesse esperando você sair do colégio.

Um instante de silêncio.

— Quer dizer que ela não era amante dele?

— Não.

Isis passeou os olhos pelo tapete da sala. Deu de ombros. Disse que bem, aquilo tinha sido há muito tempo, era passado, não tinha mais importância. Então perguntou se Isabel aceitava um chá, ela disse que sim, e Isis foi até a cozinha, colocou água na chaleira e a pousou sobre o fogão, que fez uma coroa de fogo embaixo dela, e Isis pediu licença, disse que precisava ir ao banheiro. Antes de entrar ali, olhou para o quadro O Grito na parede do corredor. Então trancou a porta, com cuidado para não ser ouvida. E finalmente entendeu o que Edvard Munch quis dizer. Isis não tinha voz, colocou a mão sobre as têmporas e quis gritar tão alto que as paredes a seu redor iam se entortar, derreter com sua fúria, num lago de fogo, tal qual inundadas por um vulcão, a lava da raiva e da dor, malditas sejam, filhas da puta, arruinaram sua vida por causa de uma aposta estúpida, e para quê? por que tudo aquilo? E Isis se curvou, também queria se atirar da ponte, mas não havia ponte, apenas o banheiro e seu espaço de cápsula, nada além daquela gorda nojenta a esperando na sala. Também era um personagem andrógino querendo gritar, porque Isis era homem, era mulher, mas se fez de mulher andrógina porque passou a vida a odiar os homens depois de depositar a promessa de uma vida, o sonho de casar e ter sua própria família, nas mãos do homem que a estava traindo com a Rainha do Baile, a putinha que todos no colégio queriam, e todos no colégio, ou todas – invejosas, recalcadas, assassinas – estavam rindo da sua cara, da sua ingenuidade: se derreter por um homem que estava colocando galhos e mais galhos em sua cabeça, uma vida que acabou antes de começar. E agora, depois de anos, ela descobre que seu ex-noivo, ex-quase-marido, ex-futuro-pai-de-seus-filhos, que jurou pela memória de sua vó que jamais a tinha traído, aquele cara: era inocente. As pessoas apagadas que estavam observando o personagem de longe provavelmente eram as suas amigas, rindo de sua cara ao observarem sua miséria a distância.

Isis saiu do banheiro e colocou a água, quase fervendo, na xícara. Colocou as ervas do chá a boiar e pegou um prato para cobrir o vapor e impedir que as propriedades medicinais fossem embora. Um laxante com gosto de hortelã, tiro e queda. Depois de alguns minutos, tirou o prato e, com cuidado uma vez mais para não fazer barulho, cuspiu sobre o chá e mexeu com a colher. Levou a xícara para a sala, perguntando a Isabel se ela preferia açúcar ou adoçante, ao que ela respondeu:

— Adoçante. Não quero engordar.

Isis sorriu e esticou a xícara para ela, o adoçante e a colher. Isabel tomou o primeiro gole. Agradeceu pelo chá.

— Então, sem ressentimentos? perguntou ela.

— Claro, sorriu Isis. Sem ressentimentos.



segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Pra quem acha que legalizar é o canal

Começando agosto, não encontrei o relatório do governo holandês, que disse não saber mais o que fazer com a maconha, já que o uso continua crescendo, continua havendo tráfico e violência por lá, assim como não encontrei o outro documento mostrando que 70% das pessoas com esquizofrenia já fizeram uso de maconha, ou que 1% dos usuários de maconha têm ideação suicida (considerando que 1% de todas as pessoas têm ideação suicida, 1% é muita gente).

De qualquer forma, achei um interessante artigo de quem esteve lá. E para quem ficou deslumbrado com o filme de nosso ex-presidente feito claramente porque sua popularidade estava em baixa, sugiro a leitura de quem realmente entende do assunto dizendo que a história não é bem assim.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Opus N.º 3 & Dream Theater

Na madrugada de hoje, enquanto tentava dormir, ainda mais que hoje tivemos o primeiro dia de new job all day long, estava pensando em escrever sobre o tal relatório do governo holandês, e achei oportuno depois que morreu a Amy para a rapeize ver que o papo é bem mais sério do que se imagina. Mas hoje, como o tempo está curto, posto um conto das antigas, hoje com a trilha que o inspirou. Como em página de livro de papel não tem música, acabei deixando o conto com a primeira estrofe da música como epígrafe. Mas como estamos na terra dos links, fui pesquisar e descobri que o Dream Theater está de música nova. Entretanto, o que me inspirou a escrever o conto, foi a maravilhosa versão de To Live Forever em Tokyo, e um dos solos mais lindos já tocados ao vivo, que por mim validaria uma estátua para o Petrucci. Ouça a primeira parte, depois a segunda parte, e boa leitura:


OPUS N.º 3

If I started from the top
And worked my way down
There’d be no reason
To live forever.

To Live Forever, DREAM THEATER.

Sonhei com este dia. Entrar pela primeira vez naquele prédio sem estar embriagado e com um motivo palpável – e pela primeira vez ela tomaria conhecimento de minha presença. Entretanto, jamais imaginei entrar ali a serviço.

Quando chegamos, o estrago já estava feito. O fogo havia se alastrado por toda a construção. No lado direito, terreno baldio; no esquerdo, uma quadra de futebol de cimento. As demais casas da quadra dispunham-se quase coladas entre si, mas a uma distância segura do prédio. Já era um começo.

A pintura da cena compunha-se da estética das labaredas seduzindo o concreto, incitando-o a tombar no chão. Emoldurada pelo céu marinho-cinza-negro que só observava. Gritaria da multidão. Delimitar território, sempre tenho que dizer a mesma coisa? Piromaníacos cercavam o lugar, fascinados. Notei o pavor nos olhares de cada mãe e pai, cujos filhos haviam permanecido trancafiados nos apartamentos para evitar acidentes. Que ironia idiota. E posso jurar que nenhum daqueles novatos, pobres criaturas normais, estava mais verdadeiramente desesperado do que eu, com todos esses anos de experiência.

Entrei correndo no prédio, enquanto os soldados recém-chegados colocavam-se em posição. A escada nunca chega a tempo. Fui sozinho, ignorando qualquer racionalidade ou senso de trabalho em equipe. Percebi logo que o caminho era mais combustão do que material. Tentei me desviar dos objetos que vinham caindo. No percurso, fui contemplando o inferno a minha volta. Aquelas paredes que guardavam o meu segredo.

Pensei ter ouvido o fim do mundo, mas era apenas um extintor explodindo atrás de mim, perto das escadas. Não tenho o costume de rezar, mas naquela hora gritei para Deus não deixar desabar o prédio. E então, o corredor veio abaixo. Prossegui, pulando sobre as ferragens destroçadas que compunham o único caminho para chegar ao meu objetivo ou a qualquer outro naquele labirinto em chamas. Quarenta e cinco, quarenta e cinco. Ao me dependurar em uma das ferragens, segurei com força o metal. Sem luvas. Achei que ia derreter, não o ferro, mas minha mão. Caí de costas, o ar já raro se foi por completo. Uma dor forte demais para não ser fatal golpeou meu corpo. Levantei e as paredes esbarraram em mim. Quanto tempo ainda teria? Quarenta e cinco, quarenta e cinco.

O céu lá fora despencando, o prédio ali dentro também. O terceiro andar foi pior. Cortina de Fogo, a língua do dragão. Mais escadas. Ao segurar o corrimão, guiando o corpo para não ruir junto da arquitetura a minha volta, constatei que minhas mãos não possuíam mais pele. O ferro é um ótimo condutor de calor.

Olhos embaçados. Ardentes e ardidos. Quarenta e cinco, deus do céu!

A nuvem de fumaça fez o tempo parar. Não estávamos realmente ali. O mundo se transformara em um imenso fotolito amarelo e vermelho. Um animal gritando como a querer ser ouvido na estratosfera veio em minha direção. Desviei, lançando-me uma vez mais ao chão. Era mais fogo do que carne e pele. Por meio segundo senti pena dela. Acho que era uma adolescente loira, mas que diferença faz a cor? Ao girar meu pescoço, vi dois braços e duas pernas incandescentes saltando pela janela. Quarenta e um... Quarenta e dois, quarenta e três. Arrombei a porta. Estava jogada num canto, perto do sofá da sala. E tudo que vi quando olhei para ela foi:

— Fogo.

Peguei-a em meus braços – como fazem os heróis – e a levei. Ela tossia muito, duvido que dispusesse de suas plenas faculdades mentais. Seu corpo estava quente. O meu também. Voltei com ela, não lembro detalhes.

Transpassei aquilo que um dia foi a porta de entrada do edifício. O fotolito mudara de cor. Voltei a ter contato com o ar. Uma parede de oxigênio investiu contra meu corpo, uma represa destruída desaguando sobre a terra seca e quebrada. Comecei a chorar. Imperceptível, mas um choro é sempre um choro. Levaram-na para a ambulância e lá permaneceu. Eu, tombado.

Quando voltei a mim, o prédio já estava no chão. Consegui me levantar e me aproximei da ambulância. Ao chegar perto, ela me olhou agradecida. Salvei sua vida, podia pedir o que quisesse. “Um jantar?”, pensei ter ouvido. Como se tivesse lido minha mente, ela mordeu o lábio inferior e continuou a me olhar, esperando uma reação. Teria ela percebido alguma coisa? Visto-me algum dia pela janela de sua sala, agora um amontoado de cinzas? Bêbado? Bêbado, claro. Senti um frio imenso, maior que tudo. Ela me conhecia.

Abri a boca para balbuciar qualquer bobagem que – tinha certeza – seria correspondida. Ela aguardou. Quis. Uma mão forte me puxa pelo ombro e aponta o caminhão vermelho que já está partindo. Os últimos soldados sobem. Mais trabalho. Sirenes ligadas, a do caminhão e a da ambulância que parte apressada. Sem um abano sequer. Tanta luta, tanto ensaio, tantas noites e para quê? Entro no caminhão sem pele nem alma. O homem grita, ninguém ouve. Quem sabe no próximo incêndio?

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Working Man

Pois que alguns minutos depois de postar o texto abaixo, a internet e o telefone aqui do Pombal Palace foram para o espaço de novo, e essa chuva diária não contribuiu em nada para voltarmos aos trabalhos internéticos. De volta ao batente, glória ao Pai, esse julho tem me saído melhor que a encomenda. Na semana retrasada, tivemos cinco dias maravilhosos de Curso de Inverno (de atualização), e fiquei muito tentado a escrever sobre o relatório do governo holandês, o que talvez faça em um futuro próximo. E então, há uma semana, soube da possibilidade bem real de um de meus trabalhos (aquele que tem horário para entrar e sair) se tornar efetivamente um emprego (desses com horário para entrar e sair), o que aconteceu sexta-feira passada. É claro que meu tempo diminuiu consideravelmente, mas se lembrar dos mais de 30.000 que conseguiram escrever um romance em um mês no ano passado, se eu tiver disciplina, dá pra seguir produzindo literatura.

Não sei se é coincidência de inverno, mas durante a redação da maior parte de meus últimos textos, estava chovendo – como está chovendo agora enquanto escrevo. Não importa. A vida segue em frente. Tentando manter o foco e a perseverança para equilibrar os pratos da literatura e administrar o tempo, porque agora they call me the working man.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Dia Mundial do Rock

Depois de alguns dias com os cabos desplugados por aqui (leia-se: sem internet), no Dia Mundial do Rock, como a lista das preferidas dos famosos está meio levezinha, homenageamos os deuses do rock and roll com a melhor banda do universo, direto do mesmo ano em que aconteceu o Live Aid, de onde saiu o dia de hoje.

Em breve, leitores-fiéis e anônimos: e-mails respondidos, novas mensagens, posts & um pouco de literatura.

Up the irons.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Nassar & Sinopses

Um ano depois da morte de meu pai, em 61, me desliguei de fato dos negócios da família, tinha um projeto literário, que eu não trocava por nada. Me espanto ainda agora com o vigor daquele meu projeto, que me levou a abandonar a faculdade de Direito no último ano, me levou a me desinteressar da carreira universitária e me levou a me desinteressar de um negócio incipiente mas próspero, pra não falar de outras coisas que abandonei, essas sim doidas.

Raduan Nassar, entrevista a Edla Van Steen. In: Viver & Escrever – vol. 2. Ed. Lpm.

No dia mais frio do ano, lembro que Caio F. dizia que esta é uma cidade de verões amazônicos e invernos russos, e comecei hoje uma semana de seminários & estudos all day long aqui em São Petersburgo Alegre. Antes disso, semana passada, descobri o mundo mágico das sinopses, e comecei o longo mas prazeroso processo de reescrever um livro. No capítulo sobre Trabalhar e Retrabalhar, na minha oficina preferida, Stephen Koch aconselhava a fazer uma sinopse depois de terminar a primeira versão de um livro, e sugeria fazer uma sinopse por dia, até ter a história compacta, presa em uma cápsula. É um exercício muito legal sobre casar acontecimentos e reviravoltas dentro da narrativa, pensar melhor a relevância de certos personagens e certos diálogos. O grande desafio é recontar uma história que levou três anos e meio para ser escrita, mas como seria contada hoje. Escrevi duas sinopses em dois dias, e pretendo escrever mais nos próximos. Conforme o tempo permitir, claro. E jogar com o tempo para continuar lendo meu primeiro Faulkner, que já percebi ser uma aula sobre diferentes narradores.

E amanhã vamos a 0º. É mole?

terça-feira, 21 de junho de 2011

Altair Martins e Minhas Madeixas Pop

Cheguei faz pouco da brilhante conversa de Diego Petrarca e Lorenzo Ribas com o Altair Martins, meu ex-professor e colega de coletâneas, que me disse que usou meu conto “Madeixas Cor de Sangue” em suas aulas nas escolas de Segundo Grau e no curso de Formação de Escritores e Agentes Literários da Unisinos, para minha total surpresa. Aliás, a primeira coisa que ele falou quando me viu foi “Madeixas Cor de Sangue!”, evocando o conto publicado no livro Contos de Bolsa da editora Casa Verde há quase 5 anos. Queria ter anotado todas as pérolas que foram faladas hoje à noite, tais como a literatura ser sempre autobiográfica, nem que seja só um pouquinho, mas um farelo do autor sempre está presente no texto; o Narrador também é um personagem, muito da história se constrói a partir de sua voz, o como se conta; se nem todos vão ler o texto, ele não precisa ser entendido por todo mundo; “nós pesquemo um peixe” está correto gramaticalmente, desde que eu entenda o nível de significância no qual estou inserido; mais importante do que sermos biográficos é sermos bibliográficos, porque nosso texto dialoga com o que já foi escrito antes; mesmo que muitos textos estejam escritos em terceira pessoa, na verdade o autor está falando em primeira pessoa, mas disfarçado de terceira, a tal autobiografia ficcional; a linguagem em literatura, assim como o teatro sem a obrigação televisiva de ter piadinha, são sinais de Resistência, de uma recusa em aceitar a mediocridade estabelecida.

E um dos meus preferidos: a verdadeira biografia de um escritor são seus escritos.

Mas só no fim o Altair me disse que usou meu “Madeixas Cor de Sangue” em suas aulas, a princípio sem falar meu nome, mas apresentando o texto (que os alunos deveriam opinar se era conto ou poesia) com “esse conto fala de uma mulher ruiva, e o autor é um ruivo”. E foi conversando depois da entrevista que falei sobre a novela que escrevi, mas na qual ainda tenho muito que trabalhar (atenção: não confundir com o um pouco eterno livro, que é um romance), e falei que a Naomi (que era outro dos meus Contos de Bolsa) e a tal mulher de cabelos vermelhos viraram personagem nessa novela, o que o Altair achou muito legal, dizendo que aquela mulher dá pano pra manga. Já estava pensando mesmo em reescrever essa história, pensando melhor o ponto de vista do Narrador, da voz com que a história é conduzida. A noite de hoje foi um alento. Aliás, já estamos armando leituras críticas para as próximas férias. E ouvindo tudo o que ouvi hoje, tive mais fé na autonomia do escritor, de realmente escrever segundo suas próprias escolhas literárias e sustentá-las. Por exemplo, já que falei em Naomi. Algumas pessoas perguntam de onde tiro o nome de meus personagens, e por que não coloco nomes “brasileiros”. Naomi vem de Naomi Rachel, uma das filhas de Stephen King, e não posso chamar de Maria ou Josefina ou Ana Cláudia uma personagem que antes de eu imaginar suas formas físicas já tinha o nome de Naomi, e isso vale para todos os outros personagens. Nome de rua a gente muda; personagem, não.

Mas enfim, já que andou rolando pelas aulas do Altair, e para você que provavelmente não é um leitor antigo deste blog, para abrir os trabalhos no primeiro dia inteiro de inverno, deixo este breve conto in red:

MADEIXAS COR DE SANGUE

Ela tinha os cabelos cor de sangue, mas decidiu não se matar. Tinha os cabelos cor de vinho, e tampouco podia beber. Tinha os cabelos cor de fogo, então rezou por paz. E encontrou novas madeixas, que sabiam que cor de dor rima com cor de amor, e perderam o medo de se trançar.

Killer Joe e o Solstício de Inverno

Chove. Às 3 e 46 da madrugada começamos a estação da festa do cobertor por excelência. Acabo de baixar Killer Joe, que estava há meses na lista de espera, e que vai acabar sendo a primeira música do inverno. Benny Golson foi o último músico (e o único ainda vivo) que o personagem de Tom Hanks foi buscar no final do filme Terminal. Não tenho certeza, mas é possível que a música que ele toque antes de dar o autógrafo que faltara para o falecido pai do protagonista seja Killer Joe. Tomara que seja, porque esta é uma sonzeira do primeiro escalão.

Ia postar um conto hoje, mas como hoje não vai ter oficina por causa da Entrevista Poética, aproveito para deixar a dica cultural do dia, Diego Petrarca & Altair Martins na Saraiva do Praia de Belas, às 19 e 30.

Aparece lá.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Antes de retrabalhar minha novelinha

Enquanto penso em Mobley e Lee voando High and Fligthy, tentando equilibrar os pratos entre estudos, levantar cedo, tentar ir dormir cedo, tentar ter disciplina e exercitar a escrita & leitura diárias, aproveitando que com esse friozinho não tenho mais desculpa para não fazer, vou me aprontando para ler de novo a versão da novela que terminei ano passado, ainda com muito trabalho pela frente, ainda com a voz do narrador, a fluência, os personagens e o poder de persuasão me esperando. Quer dizer, um texto nunca está pronto. Chega o momento em que a gente dedide parar de mexer, mas sempre haverá algo a retocar.

Ouvi alguns pareceres, mas segundo ensina o Professor Koch, um texto pode ruir ante a um simples comentário, quando ele ainda não está pronto para ser avaliado (o que Stephen King chamava de "versão a portas fechadas"). Enquanto isso, vou aquecendo o teclado escrevendo qualquer coisa, apenas para engraxar as engrenagens da mente e a sintaxe dos dedos, e o texto aos poucos - bem aos poucos - vai fluindo. Como este blog não é (teoricamente) um diarinho, as palavras saem com mais dificuldade quando são para serem digeridas abertamente do que sairiam se fosse um despretensioso e catártico e-mail-carta para um único leitor. Não importa. Inspiração não cai do céu, é trabalho, trabalho, trabalho sem fim, já disse Roth. Mas quem sabe se não seguir o conselho do mais famoso dos médicos-escritores, Антон Павлович Чехов, e escrever todos os dias, a coisa não embala?

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Primeiro post no new computer

Estas são as primeiras palavras que escrevo com computer, teclado e, principalmente, monitor novos. Depois de uns dias out of system, aproveito a quinta-feira (teoricamente o dia em que meus outros compromissos se aliviam) e estreio ferramenta nova. Para mim que escrevo – para você que me lê, sei que não faz muita diferença. Mas estou acostumando com digitar em um novo teclado (a velocidade vai voltando aos poucos, parece como reaprender a andar), e acostumando com a tela nítida e caracteres grandes, incrivelmente claros, depois de ver meu monitor, fiel companheiro por exatos 10 anos, agonizar meses a fio. Novos começos, não é mesmo? A vida tem que seguir em frente. Claro que agora vou – imagino – aumentar minha cobrança interna para produzir literatura. Aliás, tenho que reler alguns textos, polir, esculpir, reescrever. O mais difícil, como tudo, é começar. Mas começar é preciso, de algum modo. Como disse Stephen Koch, na frase de abertura de sua Oficina, “só existe uma maneira de começar: é começar agora”.

Pelo que ando lendo sobre Miles Davis e Dostoiévski, os caras eram extremamente dedicados. Quer dizer, os grandes sempre foram dedicados, independente da área. Miles ia na biblioteca e no museu pegar emprestadas partituras de Stravinsky e outros clássicos para aprender e estudar, coisa que muitos de seus ídolos jamais fizeram. Dostoiévsky foi leitor diligente, construindo seu talento com constância e disciplina ao longo dos anos (a frase do dia: “Quero escrever um romance, e não descansarei enquanto não conseguir”). E isso com contas batendo, fome, prisão, exílio fora e dentro de sua própria terra natal. Mesmo que tenham se passado anos, eles me ensinam a mesma coisa: continue resistindo, ignore as dificuldades, siga em frente. Se não fosse a sua perseverança, beirando o inabalável, eu não estaria divagando sobre sua obra em um fim de tarde em pleno outono de 2011.

Também vou poder estudar, agora com as aulas mais claras frente aos meus olhos. E tentar manter meu foco. E enquanto penso em como encerrar este texto, lembro de Coltrane, que fazia solos quilométricos quando estava na banda de Miles, e depois em sua carreira solo, justamente por não saber como encaixar e concluir a sequência de notas sobre as quais vinha improvisando. Mas como não sou Trane, é melhor ficar por aqui.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

RIP completa 18 anos

Enquanto a presidente do complexo onde fica a Distant Thunders Corporation e minha progenitora foi dar uma bandinha para fugir do frio, e antes de fazer o chimas e começar a trabalhar em meu escritório, vi a maravilhosa neblina e o friozinho mágico de um outono típico da cidade-sorriso. Há exatos 18 anos, no mitológico ano de 1993, tive os dois primeiros períodos da quarta-feira de biologia, e a professora pediu um trabalho para a quinta. De tarde, lembrei de uma tia minha falando sobre um certo conhecido nosso, que tinha o passado muito sofrido, pelo menos na visão dela, e vi que ela falou aquilo com uma certa admiração pela superação dele, como quem diz “depois de tudo, ele ainda está aí”. Com aquela eterna história adolescente de precisar ser aceito, pensei eu mesmo em um amigo imaginário, que também tinha tido um passado turbulento, de muitos excessos, e hoje era um cara super certinho, que andava na linha, talvez como uma reparação a si mesmo e ao mundo. A história veio para mim tão pronta que decidi escrever no caderno. Nascia ali o personagem RIP, cuja autobiografia levei horas datilografando, então catando milho, tecla por tecla, quando ganhei minha primeira máquina de escrever, que tenho até hoje, minha Brother GX-6750. Tirei alguns xerox e dei para vários amigos, inclusive uma professora de literatura, dois anos depois. Mas naquele dia acabei não fazendo o trabalho de biologia, e rodei no fim do ano (por apenas dois décimos, então a história ficou meio mal contada). Mas isso não importa. Tenho o caderno onde escrevi a autobiografia do RIP até hoje, e carrego junto a vocação registrada nas linhas de um personagem com o qual escrevi mais dois extensos contos (um deles um calhamaço mandado por carta para vinte pessoas anos atrás). E segui escrevendo, e estou escrevendo em uma quinta-feira de manhã, 18 anos depois. Embora tenha feito, e esteja fazendo, outras coisas da vida, continuo produzindo literatura. A melhor maneira de virar gente grande mas sem perder o encanto é, de alguma forma, continuar resistindo. O RIP virou gente grande, e posso identificar traços dele em Pedro Revell e Carol, protagonistas das duas narrativas mais longas que escrevi até hoje.

Então aproveito minha rápida semana de home alone para mergulhar mais na cuidadosa tradução de Robertson Frizero para as Cartas de Dostoiévski, em edição de luxo, repletas de suas convicções sobre o fazer literário (ele diz gostar muito do trabalho de Pissemski, “um mestre em contar histórias”, mas acha lamentável ele escrever rápido demais, “muito rápido e em demasia. Um homem deve ter mais ambição, mais respeito por seu talento e ofício, e mais amor pela arte. (...) Os personagens colossais, criados pelos autores colossais, em geral nascem do trabalho demorado e persistente”).

Além disso, temos várias pautas para os próximos dias, como produzir o que faltou para o Laboratório de Autores, começar a rever a Sétima Temporada da série preferida deste blog, talvez começar de novo o Faulkner, talvez começar a ler o Kind of Blue (o livro, não o disco), estudar, escrever para as teachers (18 anos depois, me tornei um bom aluno, rá!), e mandar alguma contribuição para o Escritores Independentes, que foi criado a partir dos textos da oficina.

E vamos que vamos, que a hora é agora.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Like a Rolling Stone

Quando você não tem nada, não tem nada a perder.

Essa é uma das minhas citações preferidas do cara que virou septuagenário hoje.

E um convite para seguirmos em frente. Sempre em frente.

PS - O dia já está acabando e só agora descobri que hoje foi o Dia Nacional do Café. Como este é um blog abstêmio, façamos um brinde junto com essas figuras ilustres das letras e da música.

Cheers!

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Ser poeta aos 17 anos é fácil

Começando a semana, releio que meu camarada Egberto Esmerio vai dar uma banda em London City (não se esqueça de mandar meu abraço saudoso ao pessoal da Victoria Station), estudando e tomando um chimas, na maravilha que é o outono e ouvindo I like your style, que me faz lembrar minha Mademosoille, e deixo também como lembrança a Mr. Martins, que se amarra em funk e com quem divido as palavras abaixo do Leminski, um hino à Resistência:

“A poesia, ela é um fenômeno etário, em determinado momento. Aos 17 anos todo mundo é poeta, junto com as espinhas na cara, todo mundo faz poesia. Homem, mulher, todo mundo tem seu caderninho lá dentro da gaveta e tem seus versinhos que depois ele joga fora ou guarda por mera curiosidade. Ser poeta aos 17 anos é fácil, eu quero ver alguém continuar acreditando em poesia aos 22 anos, aos 25 anos, aos 28 anos, aos 32 anos, aos 35 anos, aos 40 anos (eu estou com 41), aos 45 anos, 50, 60 anos. Até a gente encontrar um poeta, por exemplo como Drummond, ou como o admirável Mario Quintana, que são poetas que estão fazendo poesias há mais do que 60 anos.”

Ou então, veja o próprio discursando no youtube.

Tendo hoje a idade de Cristo quando morreu, eu continuo acreditando.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Acácia

Acácia era pessoa de algumas poças d’água
Tinha muitas ruas, todas de mão dupla,
Porque era um corpo com ascendente em Gêmeos
Era menina de bairros com unhas pretas descascando, mas também ruelas com glitter
Tinha prostíbulos puritanos e igrejas sobre os seios
Era território autoritário, feito uma taurina mandona
Beijos estalados no ar como viadutos de néon, convidando à catedral que abrigava o vaivém do pecador
E então Acácia chovia, maremoto de segunda-feira na prefeitura.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Novo velho Satch

Juro que ia dormir, depois de talvez acabar meu Ratos e Homens, ler mais um pouco do Viver e Escrever Vol. 2, que comecei hoje (ou ontem), preparando meu espírito para a oficina com o Diego que começa amanhã (ou hoje), mas caí na besteira de entrar na Amazon, pois estava fazendo umas anotações ao som do belíssimo Change de Richie Kotzen, que orquestrou meu saturday night, e descobri que Joe “God” Satriani está de disco novo, e pelo visto o velho Satch está de volta - e quebrando tudo. Ainda há esperança para a música, afinal. Life’s good.

Nada mal para começar o mês das noivas e das taurinas mandonas, no dia em que derrubaram o Bin e o frio voltou com tudo à cidade-sorriso. Vamos que vamos.

sábado, 23 de abril de 2011

Isis em Dois Tempos

Aproveitando o feriadão de Páscoa, e o fato de que ainda chove e troveja lá fora - sinal de que boas novidades se aproximam -, publico hoje mais dois textos da Isis, que deixo hoje em homenagem ao Mauro Paz, colega do Laboratório da 8inverso e conterrâneo, que está publicando sua Garota Azul do Lago em capítulos, e que gostou da história e me incentivou a terminá-la (em breve publico outro capítulo aqui).

I

Detestava acordar com aquela sensação de ressaca mesmo sem ter bebido, mas era o que a vida estava me oferecendo. Tinha que levantar da cama, e esse era o pior momento do meu dia. O mais difícil, o que eu sempre ficava postergando, fritando de um lado para o outro na cama, como se vira bolinho de carne. O corpo sempre demorava a entender que a noite de sono havia acabado, talvez porque não andasse com muitos motivos para viver um novo dia. Lavei o rosto, escovei os dentes, ainda zumbi. Esquentei o leite, não encontrei a Maracujina, nem o Lexotan, nem a Imipramina, que já não tomava há três dias, e essas coisas não são como aspirina, não são como curso de inglês que a gente desiste de fazer no meio do semestre. Meu estômago ainda doía, mas isso o psiquiatra não podia curar.

A buzina além da porta da sala chamou, e me apressei. Passei a escova nos cabelos para não chegar tão em fim de carreira na agência e saí. Letícia abriu a porta do carro, entrei, o carro partiu. Ela era loira, bem peruazinha, igual a maioria das mulheres do serviço. Perguntou se íamos para o melhor lugar do mundo, sorrindo ironia, e eu disse que sim, se aquele fosse meu último dia de vida tudo o que eu queria era estar trabalhando na agência. Ela colocou um cd do Cazuza, começou a falar do tempo, na previsão disseram que ia chover no fim-de-semana. Oxalá chovesse mesmo, eu não tinha grandes planos para o findi, e se todo mundo estivesse em casa reclamando do tempo, acho que não me sentiria sozinha. Letícia disse que seu time tinha perdido o campeonato, eu respondi que fazia parte, às vezes a gente ganha, outras não. Acho que ela esperava que eu dissesse algo mais condoído do que aquilo, mas a verdade é que eu não estava nem aí para futebol ou para o tempo. Até que entrou: “O teu amor é uma mentira / que a minha vaidade quer”. Contorci meu estômago e pus as duas mãos sobre ele. Ela perguntou se eu estava com dor de barriga, eu disse que sim, mas que ia passar. Ela disse que se era gastrite, o bom era espremer metade de um limão sobre um terço de copo d’água e tomar em jejum, era tiro e queda.

“O nosso amor a gente inventa pra se distrair / e quando acaba a gente pensa que ele nunca existiu”.

Já tinha ouvido aquela música dezenas de vezes, mas ela nunca tinha sido uma facada no abdômen como foi naquele momento. Fizemos uns instantes de silêncio, e eu disse que estava ficando com uma pessoa.

— Ah, é? E como é ele?

— Ele quem?

— O seu namorado.

Não era namorado. Nem era ele. Mas isso eu não podia dizer.

Coloquei a mão sobre o estômago de novo. Esforcei o sorriso e disse como quem recebe a medalha de bronze, porque era isso o que eu comecei a achar que tinha, o prêmio de consolação:

— É uma pessoa legal.

O carro seguiu em direção à Zona Norte e pensei. Não era de todo mal pensar, especialmente quando se pisa em ovos, e não se tem certeza se devemos dizer o que queremos que seja dito. Eu disse que tinha uma amiga que tinha um relacionamento, e que essa pessoa ainda mantinha relações com seu relacionamento anterior, que agora eram bons amigos. Eu sempre dizia expressões como “uma pessoa”, “um relacionamento”, porque isso é tudo o que podemos dizer quando namoramos alguém do mesmo sexo. E Letícia disse simplesmente:

— Amizade com ex? Se são amigos é porque alguém ainda gosta de alguém, e não queria ter terminado. Alguém tomou um chute e não aceitou isso.

A música terminou e apertei meu estômago de novo. Tive vontade de chorar. Fiquei com raiva da Letícia, quis discutir, quis descer do carro. Mas ela estava certa. Eu também nunca acreditei em amizade com ex. E naquele momento, depois que o carro parou no estacionamento e coloquei os pés no chão de concreto, senti que meu castelo de cartas estava para ruir. Queria muito que aquilo fosse apenas mais uma viagem da minha cabeça. Depressão de amor era pior que depressão de droga, disseram. Talvez, mais uma vez, eu era a última a perceber que o navio estava afundando, e agora não dava mais tempo de procurar salva-vidas.

* * * * * * *

II

Saí de casa meio atrasada e voei para o carro. Nem bem me maquiei. Odeio me atrasar, e ainda tinha que pegar a Isis. Ela sempre usava tênis, imagina, uma mulher em vez de usar um sapatinho ou algo mais delicado, sempre de tênis, como se fosse um guri. Liguei o carro, nem vi se tinha cds novos ou eu teria que ouvir os mesmos de sempre. Azar, eu estava atrasada. Por algum milagre divino, o trânsito não estava congestionado. Céus, eu ia conseguir chegar a tempo. Saí da avenida e virei à esquerda e buzinei na frente da casa dela.

Ela demorou um pouco, que droga, ia me atrasar. Até que apareceu, abri a porta, ela entrou. Isis era muito fechada, nunca entendi qual era a dela. Perguntei se íamos para o melhor lugar do mundo, e ela me respondeu com uma ironia. Acho que ela não gostava de trabalhar lá. Mudei de assunto. Peguei um cd do porta-luvas e coloquei no player. Eu estava possessa, o Inter tinha perdido o campeonato ontem. Isis parecia estar em outro mundo, como sempre. Coloquei o Cazuza, e logo ela se contorceu. Sei lá se ela estava se borrando ou era gastrite. Disse para ela que meu pai tomava suco de limão quando estava em jejum e funcionava. Logo ela começou a dizer que estava namorando não sei quem, e depois botou a mão no estômago de novo. Na hora lembrei de minha tia falando que Kardek dizia que a ação do espírito influía sobre o corpo, que comoções morais podiam gerar sequelas orgânicas. Nunca fui muito com esse papo de espiritismo, mas na hora isso me veio na cabeça. De repente o cara não gostava dela, ou ela não estava muito a fim do cara. Perguntei que tal ele, e ela meio que desconversou. Quer dizer, na verdade a Isis tinha um jeitinho meio estranho. Às vezes eu até desconfiava que ela gostava mesmo é de se esfregar com mulher. Não que eu tivesse preconceito, claro. Desde que ela não viesse dar em cima de mim. Era só o que me faltava, ganhar cantada de sapatão.

Depois ela disse que tinha uma amiga que tinha um namorado, mas ele ainda estava enrolado com a ex, e eu saquei na hora que ela estava falando dela mesma. Talvez ela tenha pensado que só porque ando perfumada e me vista bem sou uma tansa. Se o namorado dela, se é que era namorado, e se é que era homem, ainda mantinha amizade – amizade, que piada! – com a ex dele, então Isis estava numa roubada sem nome. Na verdade, fiquei até com peninha dela. Fui quase noiva do Marcelo por mais de quinze anos, e o cretino me deixou tantos galhos que parecia uma árvore de Natal. Com luzinha e tudo. Sei quando uma mulher está sendo enrolada, então disse que se alguém ainda era amigo de ex é porque um queria acabar e o outro não, alguém tomou um pedal e provavelmente entrou naquelas comunidades ridículas do Orkut, do tipo “a fila anda”, que é típico de quem tomou um chute mas não quer admitir que está descornado. Pensando agora, acho que ela se tocou que estava sendo enganada, mas ficou na dela. Não gritou, não chorou, não xingou. Na verdade, ficou ainda mais quieta.

Entrei com o carro no estacionamento e parei. Olhei para o retrovisor para ver se eu ainda estava poderosa. Estava. Linda e loira. Pensei em dizer algo para a Isis, para ela não esquentar a cabeça, mas ela desceu do carro e nem olhou para trás.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Enquanto chove além da grade

Chove lá fora. O dia está cinza, lindo, digno do outono. Esperamos o friozinho vindouro, enquanto estreamos o café do cocô do passarinho. Ainda na dúvida sobre o que priorizar das várias pendências que me chamam, alguns textos a serem escritos e muitos a serem lidos, pelo menos estamos produzindo, mesmo que essa produção seja às vezes apenas para o consumo interno. Estava procurando um pouco de jazz e descobri esta pequena pérola de Sonny Clark. Também descobri meu sonho de consumo, para um futuro que espera-se não muito distante – talvez comprado com royalties literários (agora só falta sair o livro, não é mesmo?).

Enquanto isso vou lendo que isso de bloqueio criativo não existe. Ou talvez exista, a partir do momento em que sentamos para escrever A Obra, e não apenas para escrever... e seja o que as frases quiserem. Na verdade, o texto ao ser escrito dita suas próprias regras, os personagens pedem ao inconsciente do escriba o que querem fazer ou deixar de frazer. O mais difícil, como sempre, é o primeiro passo, é começar. Agir. Mas como disse Bird, now’s the time.

Troveja lá fora.

São Gerônimo, Xangô e Thor mandam lembrar: novos começos se aproximam. Tudo em seu lugar, tudo em seu devido tempo.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Tema de Casa & Holiness

Estava hoje desenterrando uns disquetes que mal abrem no computer, e achei este conto, já publicado no período jurássico deste blog. Fazia vários anos que não o lia. Vai hoje junto com a dica cultural da semana, a banda Holiness de Erechim, que conheci na Zero Hora de ontem, e faz uma sonzeira de primeiro mundo. Foram produzidos pelo polvo Aquiles Priester. Aumente o som – ou simplesmente boa leitura.


TEMA DE CASA

Sem fôlego, César corre para dentro de casa. Atropelando todos os objetos em seu caminho e quase despencando pela escada, ele entra em seu quarto. Vai em direção de Mike, sentado na beirada da cama e o abraça. As lágrimas descem quentes pelo rosto de César, tatuando a alma. “Desculpe, desculpe”, apertou forte Mike contra o peito. Choro desesperado, de tremer o corpo todo. De faltar voz, de enlouquecer alguém. Choro — até quase desmaiar. “Desculpe”, implorou mais de mil vezes.

Ao chegar na escola, César avista Joana no corredor. Eles se cumprimentam, ela sorri para ele. Joana olha carinhosa para César e ele lembra do filme que nunca viu. Olhos de serpente. Ele sorri de volta. César a pega pela mão de forma suave, convidando. Joana não entende e recusa. “Vem, eu quero te mostrar uma coisa”, insiste ele. Educado, como sempre foi, como sempre exigiram que ele fosse. “Quero que tu veja uma coisa”, diz ele. “Que coisa?”, pergunta aos sorrisos. “Vem”, insiste César, conduzindo Joana pelo corredor até a porta do banheiro masculino, adentrando. Serena, Joana pergunta a César o que ele queria que ela visse. “Olha para a parede”, diz ele. Joana fica de costas para César, que lhe dá uma forte joelhada no pulmão direito, produzindo um ruído seco. A garota quase desaba sobre o chão. César a agarra pela camiseta, esmurrando seu rosto até ela se curvar, cuspindo sangue. Ele então agarra a cabeça da colega fortemente pelos cabelos e bate com ela repetidas vezes contra o concreto, quebrando o nariz de Joana, abrindo seu supercílio e um talho em seus carnudos lábios. César vira o corpo da garota, jogando-o violentamente para dentro do boxe. O barulho das costas dela tentando vencer a parede demonstram que algo foi quebrado – um alicerce ou uma costela. Com o impacto, o sangue do rosto dela espirra na parede, decorando o branco opaco de vermelho. César estrangula Joana sobre o vaso sanitário, olhando em seus olhos. Olhos de vidro nos olhos de serpente. Ele emite um grunhido, sem alterar sua expressão facial. E solta o corpo. Joana está morta, espalhada sobre as fezes de alguém que não quis dar a descarga. César sai caminhando do banheiro, atravessa o pátio e dirige-se até o portão da escola. Só então começa a correr.

Com a porta do quarto chaveada às suas costas, ele olha direto para a prateleira. Ao avistar o pequeno Mike, César avança. Passos rápidos de gigante dentro da criança que já não era mais. Passa desapercebido da cabeça de tigrinho branco de pelúcia sem corpo, jogada aos pés da cama, e bate violentamente no rosto de Mike, virando e agarrando a cabeça, batendo incessantemente com ela contra o armário. O corpo cai no chão. César aperta o pescoço de Mike com toda a força.

César entra em casa sem falar com ninguém. Durante o almoço, olha fixo para o prato, o qual esvazia muito rapidamente, se levantando da mesa em seguida. A mãe pede para ele ajudar a tirar os pratos, pois ela não pode fazer tudo sozinha. César pergunta se ela pensa que ele é um inútil e começa a xingá-la. Ela começa a chorar. Ele se tranca no quarto.

Na hora do intervalo, Joana está perto do quadro-negro perguntando para César, sentado na primeira classe, em que circo ele trabalhava, referindo-se à roupa listrada que o garoto vestia. Metade da turma gargalha. “Mas eu gosto”, ele diz, quase se desculpando. Mais gargalhadas. Ele fica sério. As piadas proliferam ao redor de seus ouvidos. Ele começa a rir. Sem graça.

Ele ergue a cabeça em direção ao canto do quarto, contemplando a sua vítima de todas as semanas, e completa em sua agenda: “hoje eu dei a centésima surra em Mike.”

César está cabisbaixo. “Eu queria poder me enterrar nesse concreto”, sussurra ele para o melhor amigo Francis, que ri cínico e diz a ele com firmeza que foi muito bem feito a namorada tê-lo traído e abandonado, pois ele tinha sido avisado. César vira o rosto em direção a Francis, tremendo as mãos. Dentes trincados. Respira fundo e conta uma, duas, dez vezes. “E não adianta me olhar com essa cara”, avisa Francis. César volta a encarar o chão.

No dia de seu aniversário, César encontra seu pai, quase um ano após a última vez em que se viram. Ganha um orangotango de pelúcia. O pai diz que sente muito não poderem se falar mais seguidamente e que vai fazer de tudo para reverter essa situação. Uma mulher o chama, ele se despede apressado. César nada diz e também se retira, após observar seu pai ir embora com a namorada. Põe-se a caminhar pela calçada, abraçando vez ou outra seu presente. Batiza-o de Mike.

Às vésperas de completar dois meses de terapia, o psicólogo finalmente ouve a voz de César. Ele conta uma história confusa, fala mal de seus amigos. O relógio marca cinco horas. César se despede do psicólogo com um forte aperto de mão e dirige-se a até o ônibus que o levaria para casa. Ao chegar, sorridente e falando alto, encontra sua mãe na cozinha e diz que mal pode esperar até a próxima semana, naquele mesmo dia. A mãe olha terna para o menino e acaricia seu pequeno rosto. Diz que seu pai ganhou a liminar que reduz a pensão e que seu tratamento com o psicólogo seria interrompido.

Na escola, cada vez mais afastado dos amigos. Em casa, cada vez mais quieto, sobretudo nas manhãs seguintes ao acordar de uma madrugada de discussões familiares. Reuniões no colégio, bilhetes frequentes denunciando sua constante falta de atenção nas aulas. Seu pai acusa César de estar se drogando. Reprovação no final do ano. Seus pais se separam.

Com raiva, com muita raiva, ele percorre as paredes de seu quarto com os olhos. Acaba parando no tigrinho branco em frente aos livros. Caminha até a outra extremidade do quarto e começa a espancar o boneco.

César tem sua atenção desviada ao ouvir um dos meninos do outro lado do campinho de futebol gritar seu nome e não percebe o vizinho que segura seu calção e o abaixa até os joelhos, trazendo consigo as cuecas. Todas as meninas sentadas no banco apontam para ele.

É Natal. Na casa da Tia Elaine, os adultos conversam perto da lareira. Dois casais com taça de vinho se encontram esparramados sobre o sofá da sala. Às duas horas da madrugada, quatro horas após o horário normal do toque de recolher, César é a única criança acordada. Caminha pela casa, ziguezagueando os parentes a sua volta, trazendo consigo o tigrinho branco de pelúcia recém ganho, até que puxa seu pai pela mão, interrompendo a conversa com suas tias, apontando para uma senhora no canto da sala, dizendo que ela era uma velha muito feia. Constrangido e irritado, seu pai o puxa pelo braço, dizendo que os meninos educados têm que ser discretos.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Da bio de Anthony Kiedis

A recaída não tem graça nenhuma. A dependência de drogas é uma doença progressiva, então cada vez que você volta a coisa fica mais feia do que antes. Assim que a primeira dose ou gole entra no seu corpo, você deixa de se preocupar com a namorada, a profissão, a família ou as contas. Todos esses aspectos mundanos da vida desaparecem. Sua única preocupação é continuar pondo carvão na caldeira, porque não quer que o trem pare. Se parar, você vai ter de sentir toda essa merda.

Essa busca é sempre excitante. Há tiras e bandidos, malucos e prostitutas. Você mergulha num grande videogame, mas está sendo enganado ao pensar que está fazendo uma coisa bacana, porque o preço é sempre maior que a recompensa. Você desiste do seu amor, da sua luz e da sua beleza para virar um buraco negro no universo que só suga energia ruim, em vez de ajudar alguém ou ensinar algo que ajude alguém. Você não cria a vibração do amor; cria um vácuo de merda. No fim, toda a glorificação romântica do vício não significa nada além da merda.

Anthony Kiedis, em sua autobiografia Scar Tissue, Ed. Ediouro, pg. 164-5.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Ozzy - O Dia Seguinte


Sou Colorado desde a infância – embora não perca minhas noites de sono por causa do futebol –, mas me achei na obrigação de comentar dois errinhos da imprensa sobre o show de ontem. Primeiro, Ozzy não entrou com a bandeira do Grêmio. Jogaram a bandeira no palco e ele vestiu (aliás, de cabeça para baixo), assim como vestiu a bandeira do Rio Grande do Sul logo em seguida. Saiu escrito que jogaram a bandeira do Inter também, mas ele não pegou (bem, isso eu não vi). Segundo, ele não tocou Rat Salad, mas Faires Wear Boots.

De qualquer forma, apesar de ter faltado No More Tears (inexplicável), Miracle Man (uma de minhas preferidas) e I Want It More (a minha preferida do último cd), o show estava animal. Valeu muito ter passado horas na fila para comprar os ingressos (aliás, descobri hoje que estou no youtube. Sou o cara de boina e mochila que aparece em 0:17). Mr. Madman está inteiraço sobre o palco, pulando, batendo palmas e jogando água na plateia e em si mesmo. Os solos de guitarra e bateria foram bem bons, mas achei meio parecidos com os solos de Zakk Wylde e do finado Randy Castillo, gravados no Live & Loud, inclusive com as interações da plateia com Castillo, para mim o melhor (e mais carismático) batera de Ozzy, junto com Tommy Aldridge, esse contratado apenas para o Speak of the Devil. Ozzy está cantando melhor do que quando jovem – será que é resultado de ele ter se aposentado de sua vida de excessos? Sei que ele costumava desafinar ao vivo, mas ontem ele cantou um set – tirando um erro de tempo, se não me engano, em Road to Nowhere – perfeito.

Então, para encerrar março (ou iniciar abril, dependendo de quando você está me lendo), deixo um abraço para o Rafael, que foi quem me mandou a foto acima, meu grande camarada Giuliano Wylde (o maior fã de Ozzy que conheço), e para o Mauro Paz, meu colega de Laboratório, que está publicando sua novela A Garota Azul do Lago em capítulos no blog de mesmo nome. Enjoy.

domingo, 20 de março de 2011

Outono Rises Again

Às 20 e 21 de hoje, começamos o glorioso Outono. O sol entra em Áries e dizem que as coisas começam a acontecer. Há exatos cinco anos soube que ia me mudar de casa e há exatos quatro anos comecei a escrever uma novela em três capítulos, que era para ter sido escrita em três meses, mas levou três anos (falando nisso, Marcelo, depois vou te pedir um help). Hoje olhei para o céu e lembrei de Resolution, e das cartas de Vargas Llosa, quando ele disse que quem assume a vocação literária como destino deve se dedicar à literatura como a uma religião, e jurei que não passaria um dia sequer sem escrever pelo menos uma frase, a partir daquele dia. Lembrei de du Deffand, que disse que a distância não é nada, o importante é o primeiro passo. Mas a verdade é que aquele veneninho do vamos-deixar-para-amanhã foi mais forte. Ontem a Lua estava grande como só vai estar daqui a 18 anos, e fizemos pedidos a ela – espero que se realizem antes de 2029. Mas para isso temos que aplicar o que disse Matt Murdock: os vencedores fazem todos os dias o que os perdedores fazem eventualmente.

Foi pensando nisso que coloquei meu livro If I don’t write, nobody else will embaixo do meu santuário, ao lado do computer. Durante os London Times, em maio de 2006, quis trazer alguma lembrança de lá que me ajudasse a escrever, de alguma forma. Foi peneirando nos brechós de Camdem Town, onde comprei um casaco estiloso que mais tarde ficou conhecido por aqui como o casaquinho do Pequeno Príncipe, que achei um livro chamado If I don’t write it, nobody else will, a autobiografia de Eric Sykes. Não comprei pela história e sim pelo título, que pintado em preto sobre a lombada branca parece uma placa. E um lembrete: se eu não escrever, mais ninguém vai.

Cada vez que olho para esse livro, todas as minhas desculpas para não produzir hoje vão para o espaço.

Hoje é o dia.

Feliz Outono para nós.

terça-feira, 8 de março de 2011

Isis e o Dia das Mulheres

Em homenagem a todas as meninas do mundo hoje, publico o segundo conto da Isis, continuação do conto publicado neste post:


Isis entrou no restaurante de beira de estrada, igual road movie. Procurou o homem que dissera que ia estar ali, de novo um homem a sua espera, feito encontro adolescente. Ele era grande como uma carreta e estava sentado em frente à mesa de madeira, ao lado da janela, alheio ao movimento dos carros que vinham da rodovia e estacionavam no posto ali perto. Enterrava a bomba na cuia do chimarrão e a girava como manivela. Colocou a água no abismo de erva-mate e tentou tomar os primeiros goles. Pela cara de nojo, estava entupido. Isis parou ao seu lado:

— Olá, caminhoneiro.

Ele olhou para ela, que completou:

— O segredo é soprar dentro da bomba e tampar com o dedo.

E disse, sem alterar a expressão:

— Assim fica melhor para chupar.

O caminhoneiro sorriu.

— Essa foi a coisa mais linda que eu já ouvi de uma mulher.

Isis ainda não tinha certeza do que estava para fazer. Um segundo de suspiro foi suficiente para recobrar a chegada da faculdade e a cegueira que a fez ir direto para casa, nem bem sentir as pernas ou os bairros pelos quais o ônibus passou e seguir possuída até sua casa, seu quarto, o armário e o álbum de fotografias. Assim como nem bem sentiu as fotos que vieram antes, a obsessão depois que entrava na cabeça só saía por milagre. Encontrou a foto da festa na qual vinha pensando nos últimos quilômetros, semáforos e paradas de ônibus. Duas meninas abraçadas que pareciam felizes, e que foram felizes, em meio a pessoas estranhas, que as fizeram estranhas, mas que ali agrupadas nem desconfiavam que um daqueles abraços tinha uma história oculta, igual a maioria dos abraços, mas ao contrário do senso comum do que seus pais esperam para seus filhos. Abraço de ovelhas negras. Isis segurou a fotografia com as duas mãos, pensou em rasgar imagens para limpar o espírito do passado que causou dor no presente, parecia papo de revista para adolescentes. O peito doía, queimava, e fez a única coisa que poderia fazer: jogou a foto sobre a mesa e recomeçou a chorar.

Depois de vários minutos, impossível saber quantos, e da limpeza que provocam as lágrimas, enxergou a fotografia com serenidade. Reparou no em volta delas, e nas outras meninas rindo para a câmera, amigas de colégio, depois de faculdade. Lembrou do cartão de natal que recebera, esperando uma resposta, e na resposta que nunca chegou. As cartas que nunca foram escritas. Vasculhou o armário, abriu o pote com os Ursinhos Carinhosos, sortido em cartas. Procurou o endereço. Jogou as cartas no chão, uma a uma. Não encontrou o remetente. Tinha que sair de casa, colocar alguma ação naquele momento até que passasse o dia, e depois outro dia, e ela pudesse esquecer, tudo o que queria era não pensar. Suas mãos tremiam. Foi até o telefone, discou o número. A voz feminina atendeu do outro lado, oi, sou eu. Isis perguntou se podia passar lá.

Caminhou as quadras que a separavam da voz do outro lado da linha, ainda respirando ansiedade. Ao se aproximar da casa de madeira verde ao fundo do pátio com areia e casinha de cachorro, Isis contemplou a morada e gritou pelo nome de Isabel. Lá dentro, uma criança pulando. A porta se abriu e uma mulher de cabelos lisos negros e compridos, que balançavam sobre o corpo gordo, veio até o portão.

— De novo por aqui? perguntou ela, sorrindo com sarcasmo.

— É, eu. Queria saber se você não tem o endereço das gurias.

— Que gurias?

— As gurias.

Isabel disse para ela entrar. Seu rosto parecia uma bolacha Trakinas, e quando estava de mal-humor – o que acontecia sempre que Isis a visitava – parecia ainda mais gorda. Isis a seguiu até entrarem na casa. A filhinha dela corria pela sala. Filha sem pai. Isabel escreveu o endereço de uma das meninas da foto, disse que era o único endereço que ainda tinha, e lembrou dos tempos em que eram colegas. Do tempo em que ficavam debochando dela por ser gorda e a chamavam de Stay Puft. Isis disse que aquilo era passado, e que nunca quis magoá-la. Isabel disse que não estava magoada, estava apenas lembrando os velhos tempos. Quando deixavam de sair com ela, com medo de os caras não chegarem nelas nas festas.

— Que ironia, não? Imagino que agora isso não seja mais importante para você.

Silêncio. Isis sequer conseguiu engolir em seco. Tentou remendar, disse que aquilo tinha sido há muito tempo, e Isabel disse que tudo bem, passado é passado. E então perguntou:

— Quer mais alguma coisa... sapata?

Os olhos de Isis faiscaram e um calor estourou corpo acima. Mas nada disse. Apenas agradeceu o endereço e se dirigiu à porta. Isabel foi quem abriu, acrescentando:

— Deixa que eu abro. Senão você pode não voltar.

Isis mal enxergou os metros que a separavam do portão e da liberdade. Demorou ainda para recobrar a respiração, até que parou na esquina. Olhou de volta para a casa. Podia ir lá, colocar tudo em pratos limpos. Talvez pedir desculpas pelos anos de deboches. Talvez dizer que ela nem era gorda, a ofensa suprema a uma mulher, qualquer mulher. Caminhou de volta ao portão, mas quando chegou em frente à casa, desistiu. Não estava com espírito para reparações. E provavelmente não estaria nos próximos meses, então decidiu dar um tempo de Isabel.

Entrou no ônibus até perder-se em mil pensamentos, e travou diálogos e possibilidades em sua cabeça além daquele endereço. Se tivesse o e-mail, seria tão mais fácil. O que andaria fazendo da vida, o que andariam, as outras todas, fazendo? Com o pensamento nublado, estava quase fora dos limites da cidade e seu estômago a lembrou que estava sem comer há horas. Não sabia onde estava, mas puxou a cordinha e desceu em frente a um restaurante de beira de estrada. Caminhou até ali e entrou, sentando ao lado de um homem grande em frente ao balcão. Devia ser caminhoneiro. Isis pediu uma torrada e um café, a garçonete disse para ela aguardar um minuto. O homem a seu lado a encarava, lobo sedento. Isis o encarou de volta.

— Este aqui não é lugar para meninas bonitas virem sozinhas.

— Não se preocupe. Eu sei me defender. Se não souber, talvez eu peça a você.

O homem sorriu.

— Que bom. Pelo seu jeito de caminhar, achei que você não gostasse de homem.

Isis sorriu de volta:

— Eu gostava. Não gosto mais.

O homem a olhou dos pés à cabeça.

— Que pena. Até pensei em convidar você para dar uma volta.

— Você dirige caminhões?

— Sim. Por quê?

Isis tirou o papel com o endereço do bolso.

— Sabe de alguém que vai passar por aqui?

Ele leu o endereço. Disse que não. Isis recolheu o papel. Suas mãos ainda tremiam.

— Mas se você quiser, posso mudar meu itinerário.

Isis olhou de volta para o caminhoneiro. Dessa vez conseguiu engolir em seco. A torrada e o café chegaram. Isis nada disse. Comeu a torrada, abocanhando grandes pedaços para terminar logo. Jogou o café goela abaixo e se levantou para pagar, ainda muda. O caminhoneiro disse apenas:

— Se mudar de ideia, estarei aqui amanhã a essa hora.

Isis olhou para trás uma última vez, e acenou com a cabeça. No dia seguinte, telefonou ao chefe dizendo que não ia trabalhar, que estava doente. Dormiu até tarde, tentando não pensar mais naquela fotografia, mas tudo o que viu ao acordar foram aquelas quatro meninas perdidas no tempo sorrindo juntas sobre a mesa. Meio-dia, uma hora, uma e meia. A tarde demorou a passar. Nem tudo passava, ao contrário do que diziam os que tinham fé. Ela não tinha, não depois do dia anterior, mas como ouviu de Bob Dylan que quando você não tem nada, não tem nada a perder, resolveu arriscar. O coração aos galopes de novo, malditos seres que eram só sentimento.

Já era de tardezinha quando Isis subiu no ônibus e pediu ao cobrador para descer perto daquele restaurante de beira de estrada, embora não tivesse certeza se aquele era mesmo o lugar. Na pior das hipóteses, o homem não estaria lá, e aquilo seria um sinal de que deveria esquecer aquela fotografia, rasgá-la e seguir em frente. Então Isis desceu do ônibus, entrou no restaurante e agora ali estava ela, em frente ao homem tentando montar seu chimarrão:

— E então? Ainda tem lugar no seu trem?

O caminhoneiro sorriu malicioso:

— Sempre tem lugar para mulheres bonitas.

Isis sentou a seu lado e disse, com voz tranquila:

— Se encontrarmos alguma pelo caminho, paramos para dar carona.

terça-feira, 1 de março de 2011

March in Time

Pensei em falar nos 15 anos sem Caio F., completados findi passado, pensei em postar a fotografia tirada na casa do Scliar, a propósito de uma matéria que saiu na ZH (e que não está aqui), que fizemos no apartamento dele sobre um jovem escritor (eu) e um experiente escritor (ele), alguns anos atrás, e tenho certeza de que quase todos que viram a matéria estavam desempregados porque a reportagem saiu no caderno de empregos. Mas o caso é que hoje começamos março, o mês em que o sol entra em Áries e começa o meu glorioso Outono, durante o equinócio de 20 de março (domingo, às 20:21 horas, para ser mais exato). E começamos o mês em uma terça-feira, dia de Xangô, da justiça, da escrita, do número 8, meu 8.

Escrever é uma maneira de falar sem ser interrompido, disse Jules Renard. O destino embaralha as cartas e nós as jogamos, disse Arthur Schopenhauer. Novos começos, ei-los de novo. Acho que este mês vamos estrear o café do cocô do passarinho brasileiro, que ganhei de Natal (reserve um horário na agenda, Mr. Zakk). E falando em Zakk, também tem show do Ozzy. Apesar da polêmica do post abaixo, ainda acho que ele (como artista) é um cara e tanto. E a meta dos próximos dias, já que março é mais uma oportunidade de tentarmos cumprir as promessas impossíveis do reveillon passado, e de vários reveillons passados, é retomar o plantio e o arado diário da literatura. Em breve, contos novos por aqui e mais trabalho no caderninho. Temos que manter a chama acesa, senão – sabemos – ela se apaga rapidinho. A frase de Nelida Piñon de alguma forma, todos os dias alguém bate a nossa porta e nos convida a desistir ainda ronda pelas esquinas.

Azar o dela, porque não vamos desistir.

Que venham, doces águas de março.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Algumas biografias e o chimas de sexta à noite

Sempre achei fevereiro um mês murrinha, talvez o mais murrinha do ano. Não é janeiro, quando temos todas aquelas promessas de este-ano-vou-fazer-tudo-diferente, que na prática nunca vingam, nem março, quando as coisas teoricamente começam a acontecer, e podemos procrastinar mais um pouquinho as tais promessas que jamais serão cumpridas. Enfim, na próxima sexta-feira, completam-se 15 anos da morte de meu conterrâneo Caio Fernando Abreu (alguma homenagem que ainda não estou sabendo?), e acho que a melhor maneira de manter a chama acesa da literatura é lendo e escrevendo. Terminei faz pouco a biografia do Ozzy, achei um pouco decepcionante, não como artista, mas como pessoa – talvez porque o cara tenha ficado sóbrio simplesmente por ficar, não porque acredite nisso, e ainda por cima debocha dos vários que escolheram seguir essa filosofia, ignorando os milhares que morrem por causa de álcool & drogas todos os anos (lembremos que Ozzy é um formador de opinião), o que não acontece com Eric Clapton, por exemplo, que assumiu como propósito de vida seguir abstinente e ajudar outras pessoas a encontrarem o mesmo caminho (e como é sexta-feira de noite, faz um calor horrendo e estou tomando chimarrão, digamos que eu tenha um certo apreço por pessoas abstêmias). Ou talvez tenha me decepcionado também porque Mr. Madman simplesmente tenha virado um milionário megalomaníaco, praticamente uma vez por ano muda de mansão, e não se cansa de esbanjar dinheiro, inclusive para comprar suvenires nazistas, o que é duplamente enfadonho - lembremos que sua esposa Sharon tem descendência judaica.

Ainda sobre biografias, estava namorando a da Clarice Lispector, estou com um cheque-presente para descontar, mas as três maiores livrarias daqui devem ter feito um cartel, porque há poucos dias encontrei um desconto considerável no livro, e agora estão todas com o mesmo preço – caro, aliás. Por outro lado, comecei a ler Como falar dos livros que não lemos?, a deliciosa e genial provocação de Pierre Bayard, discorrendo com argumentos substanciais sobre Livros que não conhecemos, Livros que folheamos, Livros de que ouvimos falar e Livros que esquecemos, provando que são tênues as fronteiras entre a leitura e a não-leitura. Aliás, nem precisa ler o livro para falar dele, o que não deixa de ser irônico.

E estamos para começar a contagem regressiva para o glorioso Outono – praticamente um mês para o sol entrar em Áries, e novas Águas de Março nos aguardam além do horizonte. Enquanto isso, seguimos resistindo.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Céu Embaixo

Na semana em que saberemos como termina a saga de Mr. Bauer e vou - talvez - poder dormir mais cedo (ou pelo menos canalizar meus fins de noite para a leitura dos vários livros a serem lidos na minha estante), achei um conto que estava querendo ler há 11 anos. Ouvi falar dele na época da oficina, e hoje descobri que o conto abaixo é do Leminski (do livro Gozo Fabuloso, in: jornal Folha de S. Paulo, mais!, p.12, 15 de agosto de 1999).


Céu Embaixo


17
Janelas, escancaradas janelas do 17º andar, aqui vou eu, aqui vai toda essa minha estúpida vontade de apagar a luz, única maneira decente de apagar a dor.

16
Décimo sexto andar. Até aqui, tudo bem. A temperatura está a 17 graus, o céu azul, e a lei da gravidade continua funcionando com o costumeiro rigor. Quem partiu, tem que chegar.

15
Ao passar pelo 15º andar, já não acho mais que quem partiu tem que. Está provado que é possível, em certos casos, partir sem chegar a. Nesses casos, se diz, houve empate. Eu não jogava pelo empate. Jogava pelo escândalo, vitória ou derrota. Foi vitória? Derrota? Tem gente que prefere abrir o gás. Tem quem se dedique à pesca submarina. Em nenhum desses casos, o fim é algo de último, a meta não é definitiva. Qual era o jogo dela? Fosse qual fosse, amigos, amigos, jogos à parte.

14
Só quem já caiu de um 1º andar pode imaginar o que senti quando. Quando foi mesmo? Será que foi? Ou foi um peso que tirei de cima de mim? Peso por peso, prefiro o meu, que, pelo menos, me leva para algum lugar.

13
Pronto. Treze é meu número de azar favorito. Tenho outros números de azar. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, por exemplo, essas coisas, enfim, que atravessam as réguas de cálculo. De todos, 13 é o meu predileto. Que foi que fiz para merecer cair até o 13º andar, donde se descortina um relance do Atlântico? Quem sabe eu não devia ter, vocês sabem. Vai ver, aquela nuvem lá longe não passa de um eco de um pensamento meu. A raiva é sábia.

12
Alguma coisa não pára de me dizer, não devia ter vindo. Eu sabia que a comida era péssima, o atendimento sempre ficava a desejar. Mas, depois de vindo, como desvir? O 12º é sempre o mais filosófico. Aquele onde o ato de pensar fica mais ridiculamente genérico. Cair não é genérico. Cair é a coisa mais natural do mundo. Cair é lógico. Podem perguntar para qualquer pedra do planeta Terra.

11
O 11º andar é sempre um caso à parte. Talvez melhor dissessem um caos à parte. Mas isto não seria correto. O correto consiste em dizer: o 13º andar, donde se descortina um relance do Atlântico, sim, o mais correto, é deixar cair.

10
Não sei como suporto esta situação. É absolutamente ridículo. Só porque alguém saltou do 17º andar de um edifício não quer dizer necessariamente que tenha que chegar até um, digamos, décimo andar. O décimo andar, em casos de queda, é objeto e motivo de lendas e chacotas entre muitos povos primitivos que, absorvidos por outros afazeres mais prementes, deixaram-nas cair no esquecimento, onde jazem até hoje. Mas jazem muito bem. As lendas sobre o décimo andar, ainda vai haver quem as conte. Palavra de honra.

9
Que frio. Bem que minha mãe falou, leva um casaco. Sempre assim. A cabeça não pensa, o corpo é que sofre. O que eu queria mesmo era ficar para sempre no 12º andar.

8
Ela, ela mora no 12º andar. Ao passar, quase dei um alô. Ela não entenderia. Telefonaria para a mãe. Fritaria um ovo. No máximo, olharia para baixo. Ou para cima, para ver de onde eu tinha vindo.

7
Parece mentira, mas cheguei ao 7º andar. A que ponto chegamos! Nessa velocidade, a lembrança do 12º andar parece apenas uma lembrança. A física ensina que os corpos têm sua queda acelerada à medida que se aproximam do destino. Não vejo por que deveria ser diferente comigo. A lei da gravidade é a mais democrática de todas. Rege, com idêntico rigor, gregos e troianos, jóias e paralelepípedos, impérios e pétalas de magnólia. Sete é conta de mentiroso. Ela me mentiu. Nada mais fácil que mentir que se ama alguém. Basta dizer: eu te amo. Quem vai saber? Como medir? Como provar? As palavras também estão sujeitas à lei da gravidade?

6
No sexto, fica a administração. É o andar mais frio e mais distante. É onde se tramam as grandes negociações, onde ficam os cofres com os segredos indecifráveis. Chegar ao sexto andar é a ambição de todo corpo que cai. Os que não. A poucos é dada essa proeza. Os que fracassam, fatalmente, continuarão caindo até o quinto, onde ficam os infernos.

5
Do antigo inferno, o moderno só traz o nome. Na verdade, o inferno de hoje, no quinto andar, é um dos andares mais agradáveis do edifício, dispondo de amplas instalações, sala, cozinha, banheiro, área de serviço e quarto de empregada. Os banheiros são revestidos de material à prova de fogo, precaução inútil, já que neste prédio raramente ocorre algum incêndio de proporções catastróficas. Da janela do quinto andar, avista-se o letreiro que diz, PROIBIDO CAIR.

4
Ninguém nunca soube para que servia o quarto andar. Sempre se imaginou que era uma espécie de depósito onde se guardavam as coisas que não serviam mais para os andares de cima, garrafas vazias, móveis usados, lâmpadas queimadas, livros já lidos, óculos quebrados, espelhos, diários, relógios.

3
Deus queira que esta saudade do 12º permaneça acesa durante todo este andar, durante o frio, o vento, a angústia, a raiva e a força maior deste poder que me chama.

2
Não há muito a dizer, nunca há. Meia dúzia de palavras resolvem problemas de mil anos atrás. Fomos nos dizendo cada vez menos Dizer sempre é uma outra coisa.

1
O chão é duro.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Escrevendo com 24-7 Spyz

Antes de ir para a última aula da oficina free de formas breves, resolvi matar as saudades do grande 24-7 Spyz, a melhor banda que você jamais ouviu falar – acho que o Marcelo foi a única pessoa para quem falei do Spyz que sabia quem era. Li por aí que eles vão lançar disco novo este ano (e lembrei que fiz uma homenagem a eles no um pouco eterno livro. Mas sobre isso falo mais em outro post).

Enfim, ouvi depois de anos o muito fera Face the Day, para mim sério candidato a um dos melhores momentos da década que recém acabou, mas também escrevo ao som de Heavy Metal Soul by the Pound, que comprei com parte dos royalties literários do Sex’n’Bossa.

Legal que depois de várias semanas me amarrando, comprei um novo bloquinho para viagens literárias enquanto caminho ou ando de bus, ou simplesmente sem tempo para desenvolver a ideia toda em texto. Na Bíblia de Koch, ele recomenda: reserve tempo para os cadernos. Não lembro se já comentei isso aqui, mas o mote do que se tornou o um pouco eterno livro foi tirado de uma cadernetinha minha do Menino Maluquinho que está repleta de ideias para contos, diálogos e muitos outros adubos que talvez jamais gerem plantas maiores, mas o insumo deve ser contínuo. Sempre. Como dizia o professor do clássico-da-sessão-da-tarde Jogue a Mamãe do Trem, um escritor escreve.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Um Caprica e as Sombras da Noite

Não tenho bem certeza, mas acho que foi a partir da 1 e meia da tarde de hoje (o que talvez explique o fato de eu nunca ter gostado muito de levantar cedo), há exatos 33 anos, que este caprica veio ao mundo. Como há pouco estava falando com meu fiel comparsa de Resistência sobre ser obstinado, e que se não tivermos disciplina & foco não vamos atingir nossas metas – como diria o Claudiomiro - nével, deixo uma das melhores introduções de livro que já li, aqui numa tradução não muito fiel, da coletânea de contos Sombras da Noite, de Stephen King. Uma pequena aula sobre o ofício, escrita por John D. Maconald:

“Se você quer escrever, escreva.”
A única maneira de aprender a escrever é escrevendo. Stephen King sempre quis escrever, e escreve.
Assim como escreveu Carrie, a estranha, A hora do vampiro e O iluminado, e os ótimos contos que você vai ler neste livro, e um número estupendo de outras histórias, livros, fragmentos, poemas, ensaios e outros escritos inclassificáveis, a maioria deles insignificantes demais para serem publicados.
Porque é assim que se faz.
Porque não há outro jeito. Nenhum outro jeito.
A dedicação compulsiva quase chega a ser suficiente. Mas não basta. Você precisa ter gula pelas palavras. Ser glutão. Precisa querer rolar nelas. Precisa ler milhares de palavras escritas por outras pessoas.
Você lê tudo com uma inveja que o consome, ou com um tedioso desprezo.
E a maior parte desse desprezo vai para as pessoas que disfarçam a falta de talento com palavras difíceis, estruturas de frases dignas do alemão, símbolos que saltam aos olhos e nenhum senso de narrativa, ritmo ou construção de personagem.
Então você tem que se conhecer tão bem que comece a conhecer outras pessoas. Um pedaço de nós está em cada pessoa que venhamos a encontrar.

Muito bem, então. Uma extraordinária dedicação, mais o amor pelas palavras, mais a empatia, e deste conjunto pode advir, com muito esforço, alguma objetividade.
Nunca a objetividade total.

Neste momento frágil do tempo, estou datilografando essas palavras em minha triste máquina, na sétima linha da segunda página desta introdução, sabendo com exatidão qual o tom e significado que procuro, mas sem qualquer certeza de que os esteja alcançando.
A objetividade é conquistada tão dolorosa e lentamente.
Dedicação, o tesão pelas palavras, e empatia resultam em objetividade crescente, e em seguida vem o quê?
A história. A história. Diabos, a história!
A história é algo que acontece a uma pessoa por quem você passou a se importar. Pode acontecer em qualquer dimensão – física, mental, espiritual – e em combinações dessas dimensões.
Sem a intromissão do autor.
A intromissão do autor é: “Meu Deus, mamãe, veja só como estou escrevendo bonito!”
Um outro tipo de intromissão é uma coisa grotesca. Eis uma das minhas preferidas, retirada de um dos grandes best-sellers do ano passado: “Seus olhos escorregaram pela frente do vestido dela.”
A intromissão do autor é uma frase tão inepta que o leitor subitamente se dá conta de que está lendo, e sai da história. É levado, pelo choque, para fora da história.
Uma outra intromissão do autor é a pequena aula inserida na narrativa. Esse é um de meus defeitos mais graves.
Uma imagem pode ser criada de forma elegante e inesperada, e mesmo assim não quebrar o encanto.
Ótimo. Parece tão simples. Exatamente como neurocirurgia. A faca tem um gume. Você segura desse jeito. E corta.

Uma última palavra.
Stephen King não escreve para agradar você. Escreve para agradar a si mesmo. Eu escrevo para agradar a mim mesmo. Quando isso acontece, você também vai gostar da obra. Esses contos agradaram a Stephen King e agradaram a mim.

Se você leu toda essa introdução, é porque dispõe de bastante tempo. Poderia estar lendo os contos de Stephen King.

sábado, 15 de janeiro de 2011

BBB: Bovary, Biografias & Bauer

Meu bom amigo Marcelo me deu um puxão de orelha na leitura do Flaubert, que estou me amarrando desde outubro (comecei a ler o livro de novo em novembro), estou na parte em que Emma está fazendo uma festinha particular com León dentro do fiacre. Na verdade, comecei a ler outros livros no meio, e tenho na lista de espera Como falar dos livros que não lemos, Eu sou Ozzy e Scar Tissue, sem falar nos novos rebentos que talvez venham na terça-feira, quando completo a idade de Cristo quando morreu.

Além disso, temos Jack Bauer correndo para impedir de detonarem Manhattan com os cilindros de urânio, o que está diminuindo consideravelmente minhas noites. Ainda temos pouco mais de dois meses para a chegada do glorioso outono, às vezes é tão difícil esperar, mas lembro do tempo distante em que este blog era a história de uma espera atrás da outra. E aqui estamos.

Como dizia Ernie, é preciso (acima de tudo) resistir.